sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Acórdão STA - Proc. 1054/08 - Legitimidade

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo: 01054/08
Data do Acordão: 29-10-2009
Tribunal: 1 SUBSECÇÃO DO CA
Descritores: ACÇÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL
LEGITIMIDADE ACTIVA
INTERESSE DIRECTO
INTERESSE PESSOAL
CONCORRÊNCIA
LICENÇA DE ESTABELECIMENTO COMERCIAL E INDUSTRIAL
Jurisprudência Nacional: AC STAPLENO PROC40961 DE 2002/02/21.; AC STA PROC48200 DE 2002/04/09.; AC STA PROC1576/03 DE 2004/11/10.
Referência a Doutrina: MANUEL DE ANDRADE NOÇÕES ELEMENTARES DE PROCESSO CIVIL PAG83-84; MARCELLO CAETANO MANUAL DE DIREITO ADMINISTRATIVO 10ED PAG1356-1361; AROSO DE ALMEIDA E OUTRO CÓDIGO DE PROCESSO ADMINISTRATIVO ANOTADO PAG55;VIEIRA DE ANDRADE A JUSTIÇA ADMINISTRATIVA LIÇÕES 3ED PAG93; FREITAS DO AMARAL DIREITO ADMINISTRATIVO VIV PAG37-38 PAG57-58 PAG61 PAG170-171; FERNANDES CADILHA DICIONÁRIO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO PAG297.


SUMÁRIO

I - O princípio geral relativo à legitimidade encontra-se no art.º 9.º/1 do CPTA onde se lê que “sem prejuízo do disposto no número seguinte e do que no art.º 40.º e no âmbito da acção administrativa especial se estabelece neste código, o autor é considerado parte legítima quando alegue ser parte na relação material controvertida”. Deste modo, por princípio, só se poderá apresentar a litigar em juízo quem alegue ser titular da relação jurídica administrativa donde emerge o conflito.

II - Todavia, esse princípio sofre adaptação quando está em causa a propositura de uma acção administrativa especial já que, neste caso, a legitimidade activa não depende da titularidade da referida relação visto a lei se limitar a exigir que o autor alegue “ser titular de um interesse directo e pessoal, designadamente por ter sido lesado pelo acto nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos” (art.º 55.º/1/a) do CPTA). O que alarga a possibilidade daquele que não é titular da relação material controvertida poder propor uma acção deste tipo, para tanto bastando alegar que é titular de um interesse directo e pessoal e de que este foi lesado, ainda que reflexamente, por aquela relação.

III - A indispensável e efectiva ligação entre o autor e o interesse cuja protecção reclama só garante a sua legitimidade quando, por um lado, ocorre uma situação de efectiva de lesão que se repercute na sua esfera jurídica, causando-lhe directa e imediatamente prejuízos, e, por outro, quando daí decorre uma real necessidade de tutela judicial que justifique a utilização do meio impugnatório, isto é, quando o interesse para que reclama protecção é directo e pessoal.

IV - Não tem interesse pessoal e directo e, por isso, carece de legitimidade activa aquele que pretende a anulação do licenciamento de uma grande superfície comercial com o fundamento de que a sua entrada em funcionamento abalaria seriamente a actividade do seu estabelecimento comercial tornando-o economicamente inviável e que tal conduziria ao seu encerramento e ao consequente despedimento dos seus trabalhadores.

TEXTO INTEGRAL

O Município de Esposende interpôs a presente revista do Acórdão do TCA Norte, de 24/07/08, que, concedendo provimento ao recurso jurisdicional da decisão do TAF de Braga, de 20/07/07, declarou a Autora, A… L.da, “parte legítima para a presente acção especial impugnatória” e ordenou “a baixa do processo ao TAF de Braga para aí prosseguir a sua ulterior tramitação, caso nada mais obste a tal”, a qual foi admitida por ter sido entendido que a matéria aqui controvertida tinha a relevância jurídica suficiente para justificar a intervenção deste Supremo Tribunal.

Nele se formularam as seguintes conclusões:

1. O douto acórdão recorrido violou, por erro de interpretação e aplicação, a al. a), do n.º 1, do art.º 55.º, do CPTA;

2. Na verdade, o "interesse pessoal e directo" constante desse preceito, correspondendo aos termos consagrados nos art.ºs 805.º e 821.º, n.º 1, do CA, 46.º do Regulamento do STA e 69.º, n.º 1, da LPTA (deixando de se fazer referência ao "legítimo”, por desnecessário) significa que o mesmo deve ser actual e não meramente hipotético ou eventual, que se produza concretamente na esfera jurídica ou actividade do recorrente;

3. Tal "interesse" deve, pois, traduzir-se numa utilidade ou vantagem para o recorrente, devendo ser actual como, aliás, resulta da 2ª parte "por ter sido lesado" (e não que venha a ser lesado) nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos;

4. Não o entendeu, assim, o douto acórdão recorrido ao interpretar tal conceito, no sentido de abarcar um interesse meramente eventual e futuro, desde que seja seguro, ou muito provável, que decorram prejuízos para a Autora do acto de licenciamento de construção de um Centro Comercial;

5. A entender-se desta forma, a construção de qualquer estabelecimento comercial poderia ser questionado por qualquer outro estabelecimento já instalado, uma vez que é sempre possível, que se traduza em prejuízo para este no exercício da sua actividade (retirando-lhe clientela), o que viola o princípio do mercado e da livre concorrência, como estruturante do direito comunitário;

6. Por outro lado a Autora não alegou - e muito menos provou - quaisquer prejuízos, mesmo eventuais e futuros, decorrentes da prática do acto de licenciamento em causa e que fossem susceptíveis de lesar os seus direitos (quais direitos?!. .. ) e interesses legalmente protegidos (que protecção?!. ..);

7. Limitando-se a alegar que é uma dona de um "talho ou açougue";

8. Assim, em face da matéria de facto provada, esta não integra qualquer "interesse directo e pessoal" da autora, como pressuposto de legitimidade (activa) da impugnação do referido acto de licenciamento;

9. Aliás, na providência cautelar apensa a este processo principal - em que a matéria de facto provada é a mesma - o Tribunal recorrido (TCA Norte) confirmou a sentença do TAF Braga, que julgou procedente a excepção dilatória de ilegitimidade da Autora (aí recorrente) - doc. junto - considerando que a mesma não demonstrou ter interesse directo actual e legítimo.

A Autora contra alegou para concluir do modo que se segue:

1. A determinação da legitimidade processual não provoca qualquer alteração de nenhuma natureza na questão de fundo ou substantiva; apenas assegura a alguém a possibilidade processual de a discutir, sem modificar a natureza ou influenciar a extensão ou a consistência jurídica, prática ou económica do direito a apreciar e a declarar (ou a sacrificar);

2. Os pressupostos de admissão do recurso de revista não se confundem com os seus fundamentos, intimamente ligados aos poderes de cognição do tribunal de revista, razão pela qual a mera afirmação da existência de uma alegada violação de um comando legal não conduz a que o recurso de revista seja, por si só, claramente necessário para uma melhor aplicação do direito.

3. Pelo que a admissão e apreciação do presente recurso não é, de forma alguma, necessária para uma melhor aplicação do direito.

4. Proferida a decisão meramente processual que julga legítimas as partes, os interesses subjacentes à relação material controvertida mantêm-se no exacto ponto onde se encontravam antes da decisão proferida;

5. No presente recurso, o recorrente Município não invocou fundamentos suficientes de que se verificam os requisitos extraordinários de admissibilidade do recurso de revista previstos no artigo 150.º, n.º 1 do CPTA;

6. A decisão processual que declara o impugnante parte legítima, não provoca quaisquer consequências ou reflexos no âmbito do princípio comunitário da livre concorrência, pelo que tal questão decidida não se reveste nem da relevância jurídica e social que o recorrido lhe atribui, nem da relevância jurídica e social prevista no referido preceito legal, pelo que o presente recurso é inadmissível;

7. Lido o recurso, há que concluir que em nenhum momento a decisão recorrida é dele concreto objecto, limitando-se a procurar repristinar a decisão revogada pelo acórdão recorrido;

8. O recurso não aprecia nem censura as questões decididas no acórdão recorrido, quer quanto à distinção entre legitimidade processual (por aproximação ao conceito de interesse em agir) e titularidade da relação jurídica material controvertida, quer quanto à distinção entre interesse directo e pessoal, usado para efeitos de legitimidade activa impugnatória e capacidade lesiva actual e imediata do acto impugnado, quer quando às conclusões decisórias que com base em tais distinções foram proferidas;

9. Do mesmo modo não se pronunciou quanto à conclusão decisória de acordo com a qual se encontra provada a existência de prejuízos por isso ser facto notório, prova essa que o acórdão recorrido fundou na norma do artigo 5140 do CPC, aplicável ex vi do artigo 1.º do CPTA;

10. Os recursos destinam-se a apreciar as questões resolvidas pela decisão recorrida e não a resolver as questões colocadas pelo recorrido na primeira instância ou questões decididas na decisão revogada pela decisão recorrida;

11. A decisão recorrida não merece censura - e nenhuma lhe foi feita, como se disse - pelo que deve ser confirmada, improcedendo o recurso.

Colhidos os vistos legais cumpre decidir.

FUNDAMENTAÇÃO

I. MATÉRIA DE FACTO.

A decisão recorrida julgou provados os seguintes factos:

1. A autora é uma empresa, estando registada sobre a forma de sociedade comercial por quotas, constando, como objecto social, do respectivo registo o exercício do comércio de carnes verdes - talho ou açougue [ver documento de folhas 24 a 28 dos autos que aqui se dá, para todos os efeitos legais, como integralmente reproduzido];

2. Em 16.05.2002 a sociedade B…, SA, apresentou um projecto junto da Câmara Municipal de Esposende, para a edificação de um Centro Comercial, localizado no sítio das …ou …, freguesia de Gandra, concelho de Esposende [ver documento de folhas 18 a 40 do PA que aqui se dá, para todos os efeitos legais, como integralmente reproduzido];

3. Em acta da sessão extraordinária da Assembleia Municipal de Esposende, realizada em 23.07.2003, sob o ponto único relativo ao reconhecimento do interesse público do equipamento comercial a ser construído na zona industrial de Esposende, relativamente à obra referida no número anterior, extrai-se, a final, que 'A Assembleia Municipal deliberou, por maioria absoluta dos presentes, corrido escrutínio secreto, com dezassete votos a favor, quinze votos contra e uma abstenção, aprovar a proposta da Câmara Municipal e reconhecer o interesse público do equipamento comercial a ser construído na zona industrial de Esposende [Gandra, Marinhas e Palmeira de Faro]" [ver documento de folhas 135 a 138 do PA que aqui se dá, para todos os efeitos legais, como integralmente reproduzido];

4. Em despacho datado de 14.04.2005, do Vereador da Câmara Municipal de Esposende, no exercício de competências delegadas pelo respectivo Presidente da Câmara, relativamente à obra supra referida, extrai-se que "1. Deferidos, o projecto de arranjos exteriores devendo o requerente durante a execução da obra, dar cumprimento ao ponto 5 da informação DGP/1656112005 e desenho anexo. 2. Deferidos 5 projectos das especialidades e os projectos de obras de urbanização nos termos das informações DPD/15511/2005, 64/DASU/2005, DIM/16564/2005 e DGU/16562/2005. 3. Deverá o requerente apresentar garantia bancária para garantir a boa e regular execução das obras de urbanização, no valor de 1.000.000,00 €. 4. Informar o requerente de que deverá solicitar a emissão do alvará de licença de construção, no prazo máximo de um ano" [ver documento de folha 589 do PA que aqui se dá, para todos os efeitos legais, como integralmente reproduzido];

5. Em 28.04.2005 foi emitido a favor da B…, SA um alvará de licença de construção com n.º 34/2005 relativo à obra referida nos números anteriores, para a construção de um centro comercial [ver documento de folha 748 do PA que aqui se dá, para todos os efeitos legais, como integralmente reproduzido];

6. Em 17.05.2005 foi celebrada uma escritura de compra e venda do terreno onde se localiza a obra a erigir supra referida, tendo a empresa B…, SA, figurado no citado documento como vendedora e a C…, SA, como compradora [ver documento de folhas 365 a 369 dos autos que aqui se dá, para todos os efeitos legais, como integralmente reproduzido];

7. Em 14.06.2005 o processo de licenciamento referido nos números anteriores foi averbado em nome da C…, Lda. [ver documento de folhas 768 a 770 do PA que aqui se dá, para todos os efeitos legais, como integralmente reproduzido];

8. Em exposição escrita que deu entrada nos serviços do réu Município de Esposende em 19.09.2005, a requerente solicitou àquela que: "Seja emitida certidão de todos os actos de licenciamento e suas informações conexas ou de fundamentação, exarados no processo camarário n.º 275/2002, de licenciamento para construção de edifícios destinados a armazéns, indústria, comércio e serviços a instalar no Parque Industrial de Gandra, com a menção de existência de outros; Seja emitida certidão de todos os documentos constantes de eventuais pedidos de informação prévia requeridos pela sociedade requerente no processo n.º 275/2002, ou que abranjam o prédio objecto do citado processo, com a menção da inexistência de outros; Seja emitida certidão de todos os pareceres de entidades exteriores eventualmente emitidos no âmbito do processo em n.º 275/2002, com menção da inexistência de outros" [ver documento de folhas 144 a 145 dos autos que aqui se dá, para todos os efeitos legais, como integralmente reproduzido];

9. Em 04.10.2005 foram emitidas as certidões pedidas pela autora nos termos do número anterior [ver documento de folhas 146 dos autos que aqui se dá, para todos os efeitos legais, como integralmente reproduzido];

10. Em 28.11.2005, foi realizada a vistoria à obra edificada do centro comercial referido nos números anteriores [ver documento de folhas 1021 do PA que aqui se dá, para todos os efeitos legais, como integralmente reproduzido];

11. Em 29.11.2005, foi emitido um alvará de licença de utilização para estabelecimento de comércio e produtos alimentares relativamente à obra referida nos números anteriores, figurando como titular da licença a C…, Lda., e a entidade exploradora o D… [ver documento de folha 1029 do PA que aqui se dá, para todos os efeitos legais, como integralmente reproduzido].

II. O DIREITO

A Câmara Municipal de Esposende, por deliberação de 23/07/2003, reconheceu o interesse público na instalação de um Centro Comercial nesse concelho o que conduziu a que o seu Vereador, por despacho de 14/04/2004, tivesse aprovado os projectos indispensáveis à sua realização e que, concluída a mesma, tivesse sido emitido a respectiva licença de utilização. São aqueles actos de 23/07/2003 e de 14/04/2004 que a sociedade A… L.da, quer ver anulados para o que propôs esta acção administrativa especial no TAF de Braga.

Aquele Tribunal declarou a Autora parte ilegítima, por entender que ela não tinha “qualquer interesse actual e imediato na impugnação do acto em causa, pois os prejuízos invocados são de carácter meramente eventual e mediato”, decisão que o Tribunal Central Administrativo Norte revogou.

Para decidir desse modo TCA entendeu que a Autora, independentemente de ser ou não titular da relação jurídica controvertida, tinha um interesse directo e pessoal em agir visto não ser “a circunstância de o licenciamento da construção do centro comercial (…) ainda não estar a prejudicar a actividade comercial da recorrente, ou seja, não é a circunstância desses prejuízos ainda não serem actuais, que deverá impedir que ela impugne esse licenciamento, retirando-lhe a necessária legitimidade para o efeito. Questão é que lhe assista interesse directo e pessoal nessa impugnação e que, pelo menos, seja seguro ou muito provável que esses prejuízos ocorrerão. E quanto a isso não restam dúvidas; mostra a experiência que esses prejuízos ocorrerão (facto notório – art.º 514/1 do CPC); mostra a lógica das coisas que esses danos agredirão directamente a esfera jurídica da titular dessa actividade comercial, a sociedade recorrente, a quem assiste, pois, um interesse directo e pessoal na impugnação contenciosa que os pode evitar.”

Daí que tenha concluído que a Autora era “parte legítima para a presente acção especial impugnatória”, e tenha ordenado “a baixa do processo ao TAF de Braga para aí prosseguir a sua ulterior tramitação, caso nada mais obste a tal.”.

O Município de Esposende interpôs recurso dessa decisão sustentando que só se poderia afirmar que a Autora tinha legitimidade para propor a presente acção se o interesse que ela pretende fazer valer em juízo fosse actual e não meramente hipotético ou eventual e, por isso, que os actos cuja anulação pede lhe causavam imediatos prejuízos. Ora, não tendo alegado quaisquer prejuízos, mesmo eventuais e futuros, decorrentes da prática dos actos impugnados susceptíveis de lesar os seus direitos e interesses legalmente protegidos, era evidente que a Autora carecia de legitimidade e que, por isso, bem tinha andado o TAF de Braga quando, com esse fundamento, o absolveu da instância.

Recurso que foi admitido por ter sido considerado que "a questão a dirimir no âmbito da presente revista se apresenta como de especial relevância jurídica, por passar, designadamente pela densificação do conceito de “interesse directo e pessoal”, a que alude alínea a) do n.º 1 do art.º 55.º do CPTA, para efeitos de “legitimidade activa impugnatória” e, portanto, com um alcance que extravasa significativamente do caso concreto e poderá servir de referência interpretativa da norma em causa noutras eventuais situações, tratando-se, por outro lado, de questão que se reveste de alguma complexidade, e que motivou, aliás, uma leitura divergente, por parte do TCA Norte, em sede do procedimento cautelar de suspensão de eficácia deduzido pela aqui Recorrida com referência ao já mencionado despacho do Vereador da CM de Esposende, de 14/04/04, e em que o TCA manteve a decisão da 1ª instância, no sentido de ilegitimidade activa da dita Recorrida, por se tratar, fundamentalmente, de interesses “meramente eventuais e hipotéticos e que não resultam do acto administrativo em si mesmo considerado (…)” – cfr. fls. 443 – o que tudo bem evidencia a particular relevância jurídica da questão levantada nesta revista.”

A questão que se nos coloca é, pois, como se vê, a de saber se a Autora (ora Recorrida) tem legitimidade para impugnar a (1) deliberação da CM de Esposende que reconheceu interesse público na construção do Centro Comercial aqui em causa e (2) o acto que o licenciou.

1. A legitimidade é, como se sabe, um pressuposto processual, isto é, uma condição cuja verificação é indispensável à obtenção da pronúncia do Tribunal sobre o mérito da causa.
O princípio geral relativo à sua aplicação na esfera administrativa encontra-se no art.º 9.º/1 do CPTA onde se lê que “sem prejuízo do disposto no número seguinte e do que no art.º 40.º e no âmbito da acção administrativa especial se estabelece neste código, o autor é considerado parte legítima quando alegue ser parte na relação material controvertida”. O que, quer dizer que, por princípio, só se poderá apresentar a litigar em juízo quem alegue ser titular da relação jurídica administrativa donde emerge o conflito.

Todavia, esse princípio sofre adaptação quando está em causa a propositura de uma acção administrativa especial já que, neste caso, a lei não elege a titularidade da referida relação como critério de aferição da legitimidade activa visto se limitar a exigir que o autor alegue “ser titular de um interesse directo e pessoal, designadamente por ter sido lesado pelo acto nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos” (art.º 55.º/1/a) do CPTA). O que alarga a possibilidade daquele que não é titular da relação material controvertida poder propor uma acção deste tipo, para tanto lhe bastando alegar que é titular de um interesse directo e pessoal e de que este foi lesado, ainda que reflexamente, pelo acto que quer ver anulado. Sendo que o critério para se ajuizar da necessidade de tutela judicial é, precisamente, a utilidade ou vantagem que ele possa retirar da anulação contenciosa, atenta a sua intrínseca conexão com os efeitos imediatos do acto impugnado Aroso de Almeida e Fernandes Cadilha, in CPTA Anotado, pg. 55. Vd. também Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, 3ª ed., pág. 93 e Acórdão do Pleno deste STA de 21/02/02, rec. 40.961..

O que nos permite, desde já, retirar duas importantes conclusões para a solução do presente caso: a primeira, a de que se pode recorrer a juízo sem se ser titular da relação jurídica administrativa donde emerge a lesão e, a segunda, a de que não basta a invocação de um qualquer direito ou interesse para, automaticamente, se ter legitimidade activa visto ser necessário que esse interesse seja directo e pessoal e, além disso, seja legítimo, isto é, tenha a cobertura do direito.

E, porque assim, e porque a titularidade de um interesse directo e pessoal é fundamental para definir o conceito de legitimidade cumpre definir o que se deve entender por interesse directo e pessoal.

1. 1 E nesse labor importa adoptar critérios abrangentes não só porque o art. 268.º/4 da CRP garante a todos os interessados “a tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos”, mas também porque este Tribunal tem entendido que, ao nível dos pressupostos processuais e em homenagem aos princípios antiformalista e pro actione, a lei deve ser interpretada de modo a que se privilegie o acesso ao direito e a uma tutela judicial efectiva Vejam-se a propósito os Acórdãos de 2/6/99 (rec. 44.498), de 7/12/99 (rec. 45.014), de 15/12/99 (rec. 37.886), de 16/8/00 (rec. 46.518) e de 9/4/02 (rec. 48.200).. E, por isso, é de rejeitar uma interpretação restritiva do que se deve entender interesse directo e pessoal, já que isso poderia limitar o acesso à referida tutela, o que não significa que a mera invocação da violação de um direito ou interesse legalmente protegido baste para o autor ver reconhecida a sua legitimidade já que, não sendo a ilegalidade do acto critério para se aferir da legitimidade do autor, este só poderá ser declarado parte legítima quando alegue que o acto violador, para além de ilegal, é lesivo dos seus direitos e interesses legalmente protegidos e que retira vantagens imediatas da sua anulação. Ou seja, e regressando ao texto legal, importa que o autor invoque a titularidade de um interesse directo e pessoal e não meramente longínquo, eventual ou hipotético Este já era o regime que se colhia no Cod. Administrativo e no RSTA (Vd. seus art.ºs 821.º/2 e 46.º/1, respectivamente). A única diferença que se pode apontar é a de que nestes se referia, expressamente, que o interesse para além de ter de ser directo e pessoal tinha de ser legítimo, o que agora não acontece, mas essa diferença é irrelevante já que não fará sentido conceder legitimidade a alguém que se apresente em juízo a peticionar o reconhecimento de um interesse sem cobertura legal e, portanto, ilegítimo..

Por fim – e para complemento do que se acaba de dizer - importa referir que a verificação da legitimidade deve ser reportada ao momento da propositura da acção visto que, enquanto pressuposto processual, ela tem de estar presente “quando a instância tem início, e não antes, em que a anulação contenciosa não passa de mera possibilidade que o administrado poderá ou não a vir a utilizar. Na medida em que a legitimidade relaciona o interesse da parte e o desfecho do processo, só a existência real e conjectural desse processo é susceptível de convocar a necessidade do preenchimento do requisito.” – Acórdão deste STA de 10/11/2004 (rec. 1576/03)

1. 2. Encontrando-nos no âmbito de uma acção impugnatória em que o interesse alegadamente atingido é de natureza individual, vejamos se os factos invocados pela Autora como justificativos da sua legitimidade podem ser reveladores da titularidade de um interesse directo e pessoal, questão nem sempre fácil de dilucidar pelas dúvidas e incertezas que, por vezes, suscita.

Com efeito, e muito embora seja pacífico que o interesse é directo “quando o benefício resultante da anulação do acto recorrido tiver repercussão imediata no interessado” e que é pessoal “quando a repercussão da anulação do acto recorrido se projectar na própria esfera jurídica do interessado” Prof. F Amaral, in Direito Administrativo, vol. IV, pg.s 170 e 171. e que, por isso, o carácter pessoal do interesse está relacionado com a utilidade ou vantagem que o autor retira da anulação do acto e que esse benefício tem de ser directo, isto é, tem de ter repercussão imediata na sua esfera jurídica, as dificuldades surgem quando se trata de aplicar tais conceitos ao caso concreto. E isto porque, como nota M. Aroso de Almeida, “o pressuposto da legitimidade não se confunde com o do interesse processual ou interesse em agir. Com efeito, pode não haver qualquer dúvida quanto à questão de saber se quem está em juízo é parte na relação material controvertida, tal como o Autor a configurou ..... e no entanto poder questionar-se a existência de uma necessidade efectiva de tutela judiciária e, portanto, de factos objectivos que tornem necessário o recurso à via judicial.” . Vd. ainda as considerações feitas na mesma Obra a fls. 37 e 38 e 57 a 61 e, entre outros, Acórdão do Pleno de 21/02/02, rec. 40.961. E, porque assim é, salienta o mesmo Autor, o interesse processual, sempre teve grande relevância no contencioso administrativo, maxime na impugnação dos actos administrativos, “designadamente para se aferir da actualidade dos interesses dos recorrentes particulares, em termos de saber se os recursos contenciosos eram interpostos contra actos administrativos eficazes, que infligissem lesões efectivas, que não apenas potenciais ou hipotéticas (interesse directo) e uma vez esgotadas as eventuais vias de impugnação administrativa necessária”. - Aroso de Almeida, “O Novo Regime do Processo Nos Tribunais Administrativos”, 2.ª ed., pg. 57, com sublinhado nosso Vd. Obra citada, a fls. 58. Vd. também F. Cadilha Dicionário de Contencioso Administrativo, pg. 297..

Podemos, pois, concluir que a indispensável e efectiva ligação entre o autor e o interesse cuja protecção reclama só garante a sua legitimidade quando, por um lado, ocorre uma situação de efectiva lesão que se repercute na sua esfera jurídica, causando-lhe directa e imediatamente prejuízos, e, por outro, quando daí decorre uma real necessidade de tutela judicial que justifique a utilização do meio impugnatório. Parte legítima é, assim, todo aquele que retire da anulação do acto impugnado um benefício concreto - patrimonial ou moral - não contrário à lei, que directa e imediatamente se reflecte na sua esfera jurídica pessoal. E, a contrario, que não gozam de legitimidade aqueles cujo interesse não é directo e imediato e, por isso, que a tutela requerida se traduz num benefício actual mas meramente hipotético e longínquo A este propósito podem ver-se M. de Andrade “Noções Elementares de processo Civil”, pg. 83 e 84., M. Caetano Manual de Direito Administrativo 10.ª ed., pg 1356 a 1361 e, entre muitos outros, os Acórdãos deste STA de 24/10/96, (rec. 40.500) de 22/6/99 (rec. 44.568), de 24/2/00 (rec. 40.961), de 18/5/00 (rec. 45894), de 11/1/01 (rec. 46.770), de 16/3/01 (rec. 40.961), de 25/9/01 (rec. 46.301), de 26/11/03 (rec. 46/02), de 3/03/04 (rec. 1.240/03) , de 16/06/2004 (rec. 953/03) e de 10/11/2004 (rec. 1576/03)..

Assente que a legitimidade é uma condição de interposição de uma acção que deve ser aferida em função da titularidade dos interesses directos e pessoais emergentes da relação jurídica administrativa, tal como ela é configurada pelo autor, importa analisar se os interesses invocados pela Autora, ora Recorrida, foram, de facto, directa e pessoalmente lesados pelos actos impugnados, pois que só se tal acontecer é que se poderá dizer que ela é parte legítima nesta acção.

2. A Autora propôs a presente acção imputando aos actos impugnados - a deliberação da CM de Esposende que reconheceu interesse público na construção de um Centro Comercial naquele concelho e o despacho do Vereador daquela Câmara que o licenciou – os seguintes vícios: erro nos seus pressupostos de facto e de direito, desrespeito pelo Estatuto dos Eleitos Locais, desvio de poder e violação dos instrumentos de gestão territorial aplicáveis.

Os RR questionaram a legitimidade da Autora com o fundamento de que ela não havia invocado qualquer facto de onde pudesse perceber-se que tinha interesse pessoal e directo naquela impugnação, tendo ela respondido que a entrada em funcionamento daquele Centro abalaria seriamente a actividade dos estabelecimentos comerciais existentes na área, designadamente os de que era proprietária, tornando-os economicamente inviáveis, e que tal conduziria ao seu encerramento e ao consequente despedimento dos seus trabalhadores. Acrescentou, ainda, que o licenciamento impugnado significava a permissão de construção de um equipamento comercial numa zona industrial.

O que quer dizer que a Autora fundou a sua legitimidade nos reflexos que aquele acto licenciador tinha na sua esfera jurídica apelando para as incontornáveis dificuldades económicas que a concorrência acrescida, decorrente da entrada em funcionamento daquele Centro, lhe iria provocar e para a possibilidade delas porem em causa a sua sobrevivência económica. Ou seja, o bem jurídico que ela se apresentou a defender foi o interesse pessoal da sua própria sobrevivência, posta em causa pelo aparecimento de um novo concorrente de dimensão e poder económicos muito superiores aos seus.

Mas esse interesse não é suficientemente qualificado para lhe conferir legitimidade activa visto não ser directo e isto porque resultando os prejuízos alegados não do acto licenciador mas da concorrência acrescida que a instalação de uma nova superfície comercial irá trazer é forçoso concluir que não é aquele acto que irá causar os invocados prejuízos, ou seja, o interesse invocado pela Autora não é actual e imediato. Por outro lado, e ao contrário do que se sustenta no Acórdão recorrido, não se pode afirmar que os alegados prejuízos sejam certos visto nada garantir a sua inevitabilidade.

Aliás, os interesses prosseguidos pelas normas que a Recorrida crê violadas são alheios a questões de concorrência, logo é longínqua a relação entre o interesse invocado e a legalidade que ela pretende repor pelo que, também por este prisma, carece de interesse directo na anulação.

Finalmente, a actividade a que a Recorrida se dedica não está legalmente condicionada e, porque o não está, ela não pode questionar a liberdade de comércio e impedir a abertura de estabelecimentos que lhe façam concorrência.

Em suma: os interesses que a Autora pretende alcançar, muito embora possam vir a ser reflexamente atingidos pelos actos impugnados, não são directos por não se repercutirem de forma directa e imediata, e com efeitos lesivos, na sua esfera jurídica patrimonial. Tanto basta para se poder afirmar que a mesma não legitimidade para propor a presente acção.

Termos em que acordam os Juízes que compõem este Tribunal em conceder provimento à revista e, revogando-se o Acórdão recorrido, julgar improcedente a acção. Custas pela Recorrida.
Lisboa, 29 de Outubro de 2009. - Alberto Acácio de Sá Costa Reis (relator) - Jorge Artur Madeira dos Santos - Luís Pais Borges.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo - 0487/10 - Legitimidade

Sumário:

I – O autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar, sendo considerado titular do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.

II – Sendo inequívoca a legitimidade deste, apresentada petição inicial subscrita por mandatário judicial com procuração outorgada por quem já não detinha poderes para o efeito, estamos perante uma situação de irregularidade do mandato, e não de ilegitimidade, a qual pode, em qualquer altura, ser oficiosamente conhecida pelo tribunal, nos termos do artigo 40.º do CPC, competindo ao juiz fixar o prazo dentro do qual deve ser suprida a falta ou corrigido o vício e ratificado o processado.

Texto Integral:

Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

I – A…, com os sinais dos autos, não se conformando com a decisão da Mma. Juíza do Tribunal Tributário de Lisboa que absolveu a R. da instância na acção administrativa especial por si apresentada, dela veio interpor recurso para este Tribunal, formulando as seguintes conclusões:

I- De acordo com o dispositivo da sentença é peremptório que a Meritíssima Juíza de Direito considerou verificada a excepção dilatória da ilegitimidade activa, e nessa medida absolveu o réu da instância.

II- Na verdade, a Meritíssima Juíza de Direito considerou que a acção foi intentada por parte ilegítima, visto que a procuração forense foi outorgada pela Exma. Senhora B… e não, conforme deveria, pelo Exmo. Senhor C…, atenta a dissolução da sociedade.

III- Porém, não considero que a Meritíssima Juíza tenha analisado correctamente a questão. Respeitosamente, ajuízo que há erro de julgamento, por errada apreciação dos pressupostos de direito, visto que não nos encontramos face a uma questão de ilegitimidade, mas sim de irregularidade de representação da sociedade.

IV- Na verdade, quem figura no lado activo, enquanto autora, é a sociedade A…, logo quem efectivamente deveria figurar.

V- Porém, o problema coloca-se porque nos encontramos face à outorga de uma procuração por quem já não detinha poderes para o efeito.

VI- No fundo, a questão coaduna-se não com a falta de legitimidade processual, mas com uma irregularidade na concessão de mandato forense, a qual deveria e poderia ter sido suprida, logo sanada, caso a Meritíssima Juíza de Direito, em ordem ao princípio da colaboração e do pró actione tivesse concedido um prazo legal para a ratificação da procuração forense.

VII- De resto, é jurisprudência unânime do STA que: «No âmbito da ponderação dos pressupostos processuais, os princípios antiformalista, “pró actione” e “in dúbio pró favoritate instanciae” impõem uma interpretação que se apresente como a mais favorável ao acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efectiva», proferido no âmbito do processo 0850/07, de 30 de Abril de 2008.
VIII- Rigorosamente, não se arbitra que a questão contenda com uma ilegitimidade processual.
Pois, vejamos.

IX- Decorre do artigo 9.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos:
«Sem prejuízo do disposto no número seguinte e do que no artigo 40.º e no âmbito da acção administrativa especial se estabelece neste Código, o autor é considerado parte legítima quando alegue ser parte na relação material controvertida.».

X- Em termos de lei processual civil, aplicável ex vi do disposto no artigo 1.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, o qual preceitua:
«O processo nos tribunais administrativos rege-se pela presente lei, pelo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e, supletivamente, pelo disposto na lei de processo civil, com as necessárias adaptações».

XI- O preceito geral da questão da legitimidade contém-se no artigo 26.º do Código de Processo Civil. Aí se refere que o réu é parte legítima quando tenha interesse directo em contradizer – n.º 1; exprimindo-se esse interesse pelo prejuízo que, da procedência, advenha – n.º 2; e que, na falta de indicação em contrário, “são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor – n.º 3.

XII- O interesse directo de que deriva a legitimidade consiste em as partes serem os sujeitos da relação jurídica material submetida à apreciação do tribunal. “A legitimidade deve ser, pois, referida à relação jurídica objecto do pleito e determina-se averiguando quais são os fundamentos da acção e qual a posição das partes relativamente a esses fundamentos”.

XIII- Como refere Alberto dos Reis, “quando se trata de saber quem é a parte legítima para uma certa acção, não se pretende determinar apenas quem é que pode propor a acção e contra quem pode a acção ser proposta. (…) O alcance do problema é outro: pretende saber-se que requisitos devem possuir as partes para que o juiz se pronuncie sobre o fundo da causa ou sobre a relação controvertida.

XIV- Ter legitimidade é ter qualidade para obter uma sentença de mérito”.

XV- Assim, “a legitimidade processual da parte activa deve enquadrar-se com a da passiva segundo a finalidade pretendida por aquela: pagamento de quantia certa, entrega de coisa certa ou prestação de facto. Por isso, o demandante assegura a legitimidade das partes na acção se se identificar, ele próprio, como um dos titulares da relação material controvertida e apontar correctamente qual o sujeito passivo que deve responder pelo cumprimento da obrigação”.

XVI- A legitimidade processual surge em resultado, essencialmente, como a posição que as partes assumem perante o litígio, isto é, de posição “quanto à relação jurídica material, quanto ao conflito que o tribunal é chamado a resolver”.

XVII- Consistindo a titularidade da relação material controvertida “em ser demandante (legitimidade activa) o titular do direito e o demandado (legitimidade passiva) o sujeito da obrigação, suposto que o direito e a obrigação na verdade existem (…), mas uma certa posição delas em face da relação material litigada”.

XVIII- Ter legitimidade é, pois, “o poder de dirigir a pretensão deduzida em juízo ou a defesa contra ele oponível”.

XIX- Como decorre do já referido e como conclusão, a sociedade detém legitimidade para intentar a acção, visto que tem o poder de dirigir a pretensão deduzida em juízo.

XX- Logo, apenas nos encontramos face a uma questão que radica na irregularidade de concessão de poderes para a outorga do mandato forense, a qual é susceptível de ser sanada, desde que instada para o efeito pelo Tribunal.

XXI- Encontramo-nos face a uma irregularidade na concessão de mandato forense, a qual poderia ter sido suprida pela ratificação da mesma, ou pela outorga da procuração pelo único sócio da sociedade.
Assim,
XXII- Incorreu em erro de julgamento a Meritíssima Juíza do Tribunal a quo quando estribou a questão na ilegitimidade, decretando a absolvição do réu da instância.
De resto,

XXIII- A mesma situação ocorreu no processo 2648/07.3BELRB, o qual corre termos no TAF de Lisboa – 2.ª Unidade Orgânica, cuja procuração foi outorgada por quem de direito, no caso, pelo único sócio e gerente que foi da sociedade.

Em conclusão,

Face ao exposto, com o devido respeito, que é muito, e salvo melhor opinião em contrário, atento o princípio da colaboração e do pró actione, devia a Meritíssima Juíza a quo ter notificado a ora recorrente, para, em prazo legal, juntar procuração devidamente rectificada, uma vez que o impunha o acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efectiva.

Assim,
Nos melhores termos de direito e sempre com muito douto suprimento de Vossas Excelências, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, e, em consequência, ser revogada a douta sentença recorrida e proferida nova decisão de mérito, favorável à recorrente, que declare procedente a Acção Administrativa Especial.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Notificado nos termos do n.º 1 do artigo 146.º do CPTA, o MP informa não se pronunciar sobre o mérito do recurso, por entender que a relação jurídica material controvertida não implica direitos fundamentais dos cidadãos, interesses públicos especialmente relevantes, ou valores constitucionalmente protegidos como a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, o património cultural e os bens do Estado, das Regiões Autónomas e das Autarquias Locais (artigos 9.º, n.º 2 e 146.º, n.º 1 do CPTA).
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II – Mostram-se provados os seguintes factos:
A) A sociedade “A…”, foi matriculada na Conservatória do Registo Comercial sob o n.º …/….
B) Foi levado a registo, Ap. 17/041214, a dissolução e liquidação da sociedade.
C) A matrícula da sociedade foi cancelada em 14/12/2004 – Ap. 17/041214.
D) A p.i. foi apresentada em 31/05/2007.
E) À data da cessação da sociedade esta tinha por sócio C….
F) Foi levado a registo, em 22/09/2004, a nomeação de B… como gerente da sociedade.
G) A p.i. foi assinada pelo advogado A…..
H) Ao advogado foi passada procuração forense datada de 02/05/2007 pela sociedade “A…”, assinada por B…, na qualidade de gerente da sociedade.

III – Vem o presente recurso interposto da decisão da Mma. Juíza do TT de Lisboa que, julgando verificada a ilegitimidade da autora, absolveu, em consequência, a ré da instância.
Considerou, para tanto, a Mma. Juíza “ a quo” que a presente acção havia sido intentada por parte ilegítima porquanto a procuração forense outorgada ao mandatário que subscreve a petição inicial apresentada fora assinada por quem não tinha poderes para representar a sociedade em causa.
Ora, como bem alega a recorrente, e contrariamente ao decidido, não estamos perante uma questão de ilegitimidade mas sim de irregularidade do mandato.
Com efeito, a presente acção administrativa especial é intentada por sociedade que reage a decisão de indeferimento expresso de recurso hierárquico por si interposto.
Sendo que, nos termos do artigo 9.º do CPTA, o autor é considerado parte legítima quando alegue ser parte na relação material controvertida.
Do mesmo modo, de acordo com o artigo 26.º do CPC, o autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar, sendo considerado titular do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.
É certo que sobre o interessado recai o ónus de alegar os factos que integram a sua legitimidade mas no caso de impugnação de actos de liquidação os mesmos limitam-se à sua identificação no acto como sujeito passivo do tributo liquidado.
Daí que, no caso em apreço, a sociedade autora tenha inequivocamente legitimidade para intentar a presente acção.
Sucede é que a procuração outorgada em seu nome para que o mandatário que subscreve a petição apresentada possa por si litigar é assinada, de acordo com os factos que já constam dos autos, por quem já não detinha, então, poderes de representação da sociedade em causa.
E, assim sendo, estamos perante uma irregularidade na concessão de mandato forense, a qual pode, em qualquer altura, ser oficiosamente conhecida pelo tribunal, nos termos do artigo 40.º do CPC, competindo ao juiz fixar o prazo dentro do qual deve ser suprida a falta ou corrigido o vício e ratificado o processado.
Findo este prazo sem que esteja regularizada a situação, fica sem efeito tudo o que tiver sido praticado pelo mandatário, devendo este ser condenado nas custas respectivas e, se tiver agido culposamente, na indemnização dos prejuízos a que tenha dado causa (n. 2 do mesmo artigo 40.º do CPC).
A decisão recorrida que assim não entendeu não pode, por isso, manter-se na ordem jurídica.

IV – Termos em que, face ao exposto, acordam os Juízes da Secção de Contencioso Tributário do STA em conceder provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida, que deve ser substituída por outra que, em prazo a fixar, ordene a correcção do vício detectado na procuração apresentada e ratifique o processado, sob pena de, não regularizada a situação, ficar sem efeito tudo o que tiver sido praticado pelo mandatário (artigo 40.º do CPC).


quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Evolução do Contencioso Administrativo Angolano

O sistema de justiça administrativa angolano está ladeado com a evolução política e administrativa de Angola enquanto Estado. A solução encontrada para dirimir os conflitos jurídico-administrativos tem 2 períodos que são a 1ª república e a 2ª república. No primeiro período denota-se uma grande influência pela natureza da organização do poder político virado para a economia centralizada, então há como que um menosprezo ou mesmo desprezo por um sistema de justiça administrativa. Isto quer dizer que nem sequer o texto constitucional de 1975 nem as sucessivas revisões constitucionais abarcaram constitucionalmente a justiça administrativa. Os órgãos do Estado preocupavam-se essencialmente em garantir e proteger a ordem jurídica que pendia para o socialismo. Não havia controlo jurisdicional dos actos do poder público e os órgãos jurisdicionais eram confundidos com os outros órgãos do Estado, pois não havia um princípio de separação de poderes e funções do Estado. Ainda na decorrência da 1ª república foi aprovada a lei 18/88, de 31 de Dezembro ( lei do sistema unificado de justiça ) que continha o novo sistema judicial unificado e integrado pelas diversas jurisdições existentes na altura. Depois foi aprovada a lei 17/90, de 20 de Outubro, que no art. 27º veio estabelecer que " para a apreciação das questões contenciosas que digam respeito à Administração Pública, bem como à fiscalização dos actos que envolvam nomeação ou contratação de funcionários da Administração Pública, serão competentes as Salas e Câmara dos Tribunais Provinciais e do Tribunal Supremo ". Estes diplomas são o início da fase do " pecado original " do contencioso administrativo angolano, apesar de a Constituição que na altura vigorava não referir o controlo jurisdicional dos actos da Administração. Com a lei de revisão constitucional 12/91, de 6 de Maio que previu no art. 81º que os tribunais " decidem sobre a legalidade dos actos administrativos " efectivou-se o nascimento completo e com vida do contencioso administrativo angolano.
A constitucionalização da justiça administrativa angolana apenas se viabilizou com a entrada em vigor da lei constitucional que instaura a 2ª república e implementa o Estado de Direito Democrático. Foi nesta altura que se previu a criação de tribunais administrativos distintos dos tribunais comuns ( fase do " baptismo " ou da plena jurisdicionalização do Contencioso Administrativo Angolano ). Seguidamente surge-nos a fase do " crisma " ou da " confirmação " que enaltece a natureza jurisdicional do Contencioso Administrativo e recalca a sua dimensão subjectiva, ou seja, a protecção dos direitos dos particulares. Os órgãos do Estado angolano e a Administração Pública passam a ser súbditos do princípio da legalidade. A lei constitucional estabeleceu variados direitos fundamentais dos cidadãos, entre eles o direito à tutela jurisdicional efectiva ( direito de os cidadãos recorrerem aos tribunais contra os actos da Administração que violem os seus direitos constitucionalmente previstos).
A Constituição angolana dá competência aos órgãos jurisdicionais para conhecer dos actos lesivos de direitos e interesses legítimos dos cidadãos praticados pela Administração.
Ana Raquel Delgado, n.º15174

A Experiência inglesa de contencioso administrativo: do direito administrativo invisível ao direito administrativo que o é, mas não o quer ser!

1. Uma compreensão cabal do sistema de contencioso inglês implica que recordemos algumas ideias de Ciência Política e Direito Constitucional. Comecemos por recordar, muito sucintamente, que a Inglaterra (não cuidaremos de abordar as especificidades da Irlanda, da Escócia ou do páis de Gales em termos de direito administrativo e processo) não tem uma Constituição em sentido formal, entendida como um conjunto de normas aprovadas por um processo solene que vinculam os actos legislativos ordinários e cuja violação é susceptível de ser sancionado por órgãos jurisdicionais., mas apenas uma Constituição em sentido material (princípios fundamentais que enformam a organização do poder político e os direitos fundamentais dos súbditos). Não obstante o seu carácter não escrito (unwritten constitution), vigoram algumas leis constitucionais escritas. Pense-se, por exemplo, na Magna Charta, outorgada por João Sem Terra em 1215, consagrando direitos fundamentais e limitando o poder do soberano e que constituiu, na expressão do Professor Marcello Caetano, uma “espécie de foral da Nação”. Ou na Petition of Rights de 1628 que acolhe originariamente o princípio da legalidade fiscal – ninguém poderia ser obrigado a pagar impostos, sem autorização prévia do Parlamento. Ou, então, na Declaração de Direitos de 1689, que determina a ilegalidade de actos do soberano que procedam à execução ou suspensão de leis ou ao recrutamento do exército em tempos de paz sem autorização do Parlamento. Daqui resulta que, desde o século XIII, se aprofundou a lógica de limitação do poder do soberano e se colocou o acento tónico na protecção do individuo (do súbdito). Ao invés, na Europa Continental, o monarca lutava contra a pulverização do poder político, reforçando progressivamente o seu poder, numa dinâmica que iria a obter suporte filosófico com autores como Maquiavel ou Thomas Hobbes.

2. O Direito inglês insere-se no sistema da Commom Law. Direito comum por oposição aos direitos de origem consuetudinária, particulares das tribos dos povos que primeiramente povoaram o solo inglês. A garantia da justiça era concebida como um privilégio real, delegando aos judges que circulavam pelo Reino (o termo circuit continua a designar alguns tribunais dos EUA e de Inglaterra), em representação do soberano – símbolo da unidade nacional. Os judges analisavam as pretensões dos particulares, ouvindo as alegações dos queixosos e concediam – caso efectuassem um juízo de procedência – um wrist (um pouco à semelhança dos pretores romanos, os quais concediam uma actio quando a situação que lhes era submetida merecia tutela jurídica). O particular obtinha, deste modo, um remédio (remedy) para proteger a sua posição jurídica. Os órgãos jurisdicionais desempenham um papel fundamental na criação do direito inglês, com a regra do precedente e do stare decisis. É, pois, um judge-made law.

3. O facto de o direito inglês se enquadrar na família da common law tem consequências inelutáveis ao nível do sistema de administração. Efectivamente, ao contrário do que sucedia na Europa Continental com o sistema de administrador - juiz, a administração inglesa reflecte o primado da sociedade civil sobre o poder político. A Administração Pública, em consequência, submete-se ao direito comum, como todos os cidadãos (ou súbditos, mais propriamente), não se reconhecendo qualquer privilégio de decisão prévia (auto-tutela declarativa) ou privilégio de execução prévia (auto-tutela executiva). Ainda que invocando o interesse público, sempre que uma sua actuação possa afectar posições jurídicas individuais dos particulares, a Administração Pública precisa previamente de obter a permissão dos tribunais para agir. Posto isto, será que se pode falar em contencioso administrativo em Inglaterra? É o que veremos de seguida.

4. Em primeiro lugar, fixemos uma definição de contencioso administrativo (alguma doutrina portuguesa prefere utilizar as expressões processo administrativo ou justiça administrativa para se referirem à mesma realidade). Vamos adoptar a primeira – contencioso administrativo – em consonância com os ensinamentos da Escola de Direito Público da Faculdade de Direito de Lisboa mais recente. Se recuarmos à definição gizada pelo Professor Marcello Caetano, temos que “ contencioso administrativo é a actividade jurisdicional respeitante à resolução de conflitos nascidos de relações jurídico-administrativas”, explicando que essa actividade “era reservada aos tribunais administrativos”. O pensamento deste ilustre professor foi acolhido por Freitas do Amaral e Rui Machete. Sérvulo Correia, por seu turno, entende o contencioso administrativo como “ a instituição caracterizada pelo exercício, por uma ordem jurisdicional administrativa, de jurisdição administrativa segundo meios processuais predominantemente específicos”. Cremos, pois, que o “conceito contencioso administrativo refere-se à actividade jurisdicional exercida por órgãos de soberania integrados na categoria de tribunais, com vista à resolução de litígios decorrentes de relações jurídico-administrativas. Esta definição permite acentuar os três elementos que caracterizam o contencioso administrativo:
- elemento funcional: actividade jurisdicional – e não administrativa;

- elemento orgânico: desempenhada por órgãos jurisdicionais;

- elemento finalístico-objectivo: apreciação de litígios que decorrem de relações jurídico-administrativas. Em termos globais, na tripartição sugerida pelo Professor Vieira de Andrade nas suas lições de Justiça Administrativa, este último corresponde ao elemento material.

5. Dito isto, uma resposta imediatista à pergunta que anteriormente formulámos, diria que a existência de um contencioso administrativo em Inglaterra seria inadmissível porque contrário à experiência político-constitucional inglesa. Porque contrário ao espírito do seu direito, do seu empirismo, da prevalência do indivíduo sobre a administração. Pois bem, diz-se que a grande maioria das respostas imediatistas e irreflectidas estão incorrectas – ora, esta não seria a excepção à regra. O Professor Vasco Pereira da Silva certamente desenvolveria uma explicação freudiana para o nosso erro e diria que não temos a nossa “ psicanálise ao contencioso administrativo inglês” em dia. Actualizemo-la, pois.

6. O direito inglês coloca, desde logo, duas dificuldades na compreensão dos seus mecanismos de controlo da actuação administrativa:
A primeira prende-se com a inexistência de uma separação inequívoca entre o direito administrativo e o direito comum, o direito privado. A doutrina mais conceituada que se ocupou do estudo da relação entre o Estado (a Coroa) e os particulares afirmava mesmo que o direito administrativo era uma criação continental, um produto da Revolução Francesa de 1689, um privilégio exorbitante do executivo. Acrescentava-se mesmo que o Direito Administrativo era um resquício do absolutismo, só compreensível à luz da tradição francesa que, na prática, desconsiderava os direitos individuais face ao Estado – ora, não se poderia chegar a conclusão diversa daquela que assevera a inexistência de direito administrativo em terras de sua majestade.
Se a diferenciação material entre as funções jurisdicional e administrativa já se apresenta como complexa a nível material, em termos de diferenciação orgânica, a situação não era muito mais clara. É que, no final do século XIX, verifica-se o exercício de tarefas materialmente administrativas por órgãos jurisdicionais (os justices of peace, que tinham competência em matérias como o urbanismo). Não podemos concordar com a ideia da inexistência absoluta de Direito Administrativo em Inglaterra: com a expansão das funções do Estado no final do século XIX e sobretudo no século XX, conduziu à regulamentação das relações entre a administração e os particulares, ou seja, à necessidade de Direito Administrativo (assim como onde há um homem, há sociedade; onde há Estado, comunidade politicamente organizada; há Direito Administrativo). Mesmo quando as funções do Estado se limitavam à preservação da ordem e à distribuição de justiça, certos aspectos da sua actuação careciam de regulação (não nos podemos esquecer que paradigmaticamente o Estado Liberal clássico pratica actos administrativos agressivos, aqueles mais susceptíveis de ferir direitos, liberdades e garantias dos particulares): o Direito Administrativa, em Inglaterra, durante muito tempo um “direito invisível” que o tempo e as mutações do Estado se encarregaram de tornar mais transparente, mais visível. Ironias do destino, as primeiras medidas de intervencionismo do Estado surgem em Inglaterra, com as primeiras experiências de Governos do Partido Trabalhista, na década de 20 do século passado que antecederam – note-se! – o programa New Deal do Presidente americano Franklin Delano Roosevelt. Já no pós-2.ª Guerra Mundial, perante uma Europa dizimada, a ideia de um Estado intervencionista, com uma forte componente social, ganha novos adeptos. Onde surge a visão de um Estado que acompanha os indivíduos desde o nascimento até à morte? Nem mais: na Inglaterra. Aquela frase consta do Relatório Beveridge apresentado ao Parlamento de Westminster. Intensificam-se os litígios de carácter administrativo, mormente relacionados com atribuição de benefícios sociais.
Neste contexto, no início do século XX, verificamos a previsão de dois meios processuais que permitem reagir contra actos da Administração exercidos para além das competências legalmente conferidas (ultra vires) ou que consubstanciem abuse of discretion (abuso da margem de discrionariedade administrativa). Convém mencionar que no sistema jurídico inglês, pela preponderância assumida pelos tribunais na criação do Direito, os direitos dos particulares dependem dos meios judiciais de tutela
Até ao século XVII, só a Coroa tinha legitimidade processual activa para accionar estes remedies. A partir dessa data, os particulares passaram a poder lançar mão de tais medidas de tutela judiciária. Em 1933, o recurso aos remedies de certiorari, mandamus e prohibition ficou sujeito a uma autorização (leave) do High Court e a um prazo de caducidade de seis meses. E as prerrogative writs passaram a prerrogative orders, mantendo a mesma designação.

7. O certiorari é um remedy de controlo da actuação administrativa, cuja origem reside numa demanda da informação pela Coroa. Certa doutrina inglesa, como Rubinstein, considera que o certiorari surgiu para colmatar uma lacuna deixada pelo collateral attack (aplicável a questões que envolvam a prática de crimes ou erros jurisdicionais na aplicação do direito revelados nas sentenças e que envolvesse uma entidade administrativa contra a qual não pudesse ser intentada uma acção de error within jurisdiction). A explicação mais citada para delimitar o âmbito de operatividade do certiorari pertence a Atkin L.J (1924): sempre que um corpo administrativo tenha autoridade legal para definir questões que afectam os direitos dos indivíduos e tenham o dever de actuar judicialmente, actuam em excesso de poder público e não se encontrem submetidos ao controlo jurisdicional do King’s Bench Division.Numa zona de fronteira com o certiorari, encontra-se a prohibition: o escopo desta última é evitar que uma autoridade administrativa pratique actos que extravasem os seus poderes funcionais.

No que concerne ao mandamus, a sua origem não é muito clara, aventando-se que reside nos comandos, nas ordens dadas pelo soberano aos seus subordinados. O seu surgimento na prática deu-se com o Bagg’s case . Bagg era o chief of burgess de Plymouth, assumindo condutas inapropriadas para com o mayor local. Para evitar cenários de desordem pública decorrentes de “falhas de justiça” ou de actos de polícia, não tendo a lei estabelecido um remedy específico para esta situação, impõe-se que haja por imperativos de equidade e interesse público. No fundo, trata-se da imposição a uma pessoa jurídica (singular ou colectiva) da adopção de uma conduta que concretiza o dever público que lhe cabe prosseguir (public duty). Usualmente, o mandamus é considerado o como um discretionary remedy (uma acção discricionário, na medida em que os órgãos jurisdicionais podem livremente decidir não aplicá-la). Porquê? Primeiro, como assinala Paul Craig, exige uma constante supervisão da actuação dos agency bodies e – imagine-se! - frequentemente a administração manifesta falta de vontade (!) na execução das decisões dos tribunais que impõem a verificação de uma certa actuação administrativa.

Nos anos 50, face às insuficiências e aos requisitos rígidos dos remedies que acabámos de analisar sucintamente, admitiu-se o recurso aos meios processuais comuns no âmbito do controlo administrativo, como a declaration e a injunction. Propulsor desta nova orientação foi o caso Barnard vs Labour Board em que a Court of Appeal considerou não se justificar que, em virtude do decurso do prazo de 6 meses para intentar a acção, o particular ficasse desprovido de tutela judicial face uma actuação ilegal da administração pública.

A declaration teve um nascimento singular, na medida em que não resultou da criação jurisprudencial – antes surgiu com a oposição do sistema judiciário. A primeira aplicação prática ocorreu no caso Pynon vs. Attorney-General. Os tribunais foram-se apercebendo da maior flexibilidade da declaration em relação às prerrogative orders. Pode funcionar como um remedy em que o tribunal declara os direitos das partes (vinculações contratuais, direitos de propriedade e outros direitos reais, etc.) – ou como um supervisonary remedy, através do qual controla actos ou decisões praticados por entidades administrativas (decisions ou orders) e mesmo subordinate legislation.

A Injunction, por seu turno, é uma realidade secular do direito inglês e visa impelir a administração pública a cumprir as vinculações a que se encontra adstrita, quer adoptando um comportamento (conteúdo positivo), quer abstendo-se de actuar em “rebeldia” com o Direito (conteúdo negativo). Além disso, as injunctions podem dividir-se em perpetual ou interlocutory: as primeiras são emitidas no final do processo, definindo as situações jurídicas das partes, fixando os seus direitos e obrigações; as segundas, são proferidas na pendência da acção para manter o status quo, ou seja, para evitar que as situações de facto ou de direito que são objecto da apreciação pelo tribunal sofrem alterações que influam na sua valoração.

Em 1976, a Law Comission resolveu a questão de saber se era possível a cumulação das prerrogative orders com os remedies comuns que mencionámos, criando uma “super-acção” designada Appeal for Judicial Review.

8. Durante a nossa exposição, já aludimos aos Administrative Tribunals. Convém deter a nossa atenção sobre estas entidades. A primeira pergunta que se coloca é: serão verdadeiros tribunais?
Ora, a criação dos Administrative Tribunals situa-se no dealbar do século XX (nas duas primeiras décadas) dando resposta ao número crescente de litígios de natureza administrativa que surgiram na sequência da adopção das primeiras medidas de apoio e protecção social. Os Administrative Tribunals apresentavam vantagens para dirimir este tipo de litígios em relação aos courts: mais celeridade na apreciação dos casos, menor custo económico e uma crescente e importante especialização. Apontava-se, ainda, uma outra característica que demonstra bem como a ideia de um sistema inglês imaculado, completamente centrado no indivíduo é um mito: o recorrente que se sentia prejudicado pela violação de interesses protegidos pelas normas que estruturaram o Estado-Providência, ao ver a sua questão apreciada por órgãos administrativos de controlo sentia-se mais conformado com a legalidade da actuação administrativa – criava-se, assim, uma verdadeira “aparência de legalidade” (appereance of legality). Criou-se, ainda, um órgão de coordenação e supervisão dos administrative tribunals (bem como de outros administrative bodies).

Nesta sequência, na década de 70, o Governo constatou que o regime aplicável e o estatuto dos Administrative Tribunals eram caóticos – sentia-se a premência de uma reforma. Constituiu-se o Franks Commitee, do qual resultaram diversas propostas, das quais destacamos a integração dos Administrative Tribunals na ordem jurisdicional, considerando-os como part of the machinery of adjudication.

De tudo o que ficou dito neste ponto, importa reter duas ideias:
a) Os Administrative Tribunals não têm natureza jurisdicional. Pelo contrário, são órgãos administrativos independentes que exercem o controlo de legalidade de outros órgãos administrativos. Donde, em Inglaterra, registou-se uma coincidência temporal entre o “nascimento” e “o baptismo” do contencioso administrativo, na lógica psicanalítica do Professor Vasco Pereira da Silva;
b) O Direito Inglês continua a revelar uma desconfiança inusitada em relação ao Direito Administrativo. Embora tenha proliferado as regras que regulam a intervenção do Estado e a sua relação com os cidadãos, os teóricos e práticos do direito inglês não admitem de bom grado a existência de Direito Administrativo por aqueles lados. Se no início (no Estado liberal de Direito) o Direito administrativo era um Direito invisível pronto a tirar o seu “manto diáfano”; no século XX (e ainda na actualidade) é um Direito Administrativo que o é, mas não o quer ser! Não é por acaso que os manuais de Administrative Law (que ainda são poucos) ingleses dedicam um ponto da exposição dedicada ao tema “ Getting into Order 31: why?”, procurando explicar as vantagens de recorrer às prerrogative orders. Que estas não são inúteis.
Por último, note-se que, apesar de ter sido acolhida a ideia de uma jurisdição administrativa distinta da jurisdição comum, o High Court conta com uma secção especilaizada para as questões de direito administrativo – o Queen’s Bench Division- dada a complexidade e a profusão de litígios jurídico-administrativos. E o Tribunals and Inquiries Act foi mais longe na consagração das garantias dos particulares, impondo a fundamentação das decisões daquelas entidades, segundo um princípio de natural justice. Chegados aqui, pergunta-se: a integração da Inglaterra na actual União Europeia teve algum impacto no seu direito administrativo e no contencioso administrativo? Falaremos disso no próximo post.



terça-feira, 9 de novembro de 2010

Contencioso:
Administrativo
Data:
21-05-2010
Processo:
06326/10
Nº Processo/TAF:
00640/09.2BEALM
Sub-Secção:
2º. Juízo
Magistrado:
Clara Rodrigues
Descritores:
ACÇÃO ESPECIAL.PENA DISCIPLINAR.AUSÊNCIA DE RECURSO HIERÁRQUICO NECESSÁRIO.ART. 120º RDGNR.INIMPUGNABILIDADE DO ACTO.

Texto Integral:
Venerando Juiz Desembargador RelatorA Magistrada do MºPº junto deste Tribunal Central Administrativo Sul, vem, nos termos e para efeitos dos artºs 146º nº1 do CPTA, emitir parecer sobre o mérito do presente recurso jurisdicional, nos seguintes termos:I – O Presente recurso vem interposto, pelo então A., do despacho saneador/sentença a fls. 46 e segs., do TAF de Almada, que absolveu o Réu da instância por ter julgado procedente a excepção da inimpugnabilidade do acto.Nas conclusões das suas alegações de recurso, o recorrente imputa à sentença em recurso violação dos arts. 2º, 3º e 51º nº 1 todos do CPTA.A Entidade ora recorrida não apresentou contra - alegações.II – Na sentença em recurso foram dados como provados os factos constantes das alíneas a) a d), do ponto II.2.1, a fls. 48, que aqui se dão por inteiramente reproduzidos.III – Em causa está aferir se o recurso hierárquico previsto no art. 120º do Regulamento de Disciplina da GNR, aprovado pelo DL nº 145/99 de 01/09, é um pressuposto processual específico para a impugnação contenciosa dos actos administrativos. O Recorrente defende que nos termos do novo CPTA, um acto com eficácia externa, especialmente se for imediatamente lesivo, como sucede com o em apreço de aplicação de pena disciplinar, é passível de impugnação judicial imediata, nos termos do art. 51º, nº 1 do CPTA.Com efeito, embora haja quem defenda que as normas especiais que prevêem o recurso hierárquico necessário se encontram revogadas face ao novo regime processual administrativo, já segundo Mário Aroso de Almeida e Carlos Esteves Cadilha, em anotação ao art. 51º do CPTA, in Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, que passamos a citar « Nem o diploma preambular, nem o CPTA, tomam porém, posição expressa quanto às múltiplas disposições legais avulsas que prevêem mecanismos de impugnação administrativa necessária (reclamação, recurso hierárquico ou recurso tutelar). Parece dever, assim, entender - se que estas disposições de direito substantivo continuam em vigor, pelo que, nos casos nelas previstos, é necessária a utilização da impugnação administrativa (v.g., o recurso hierárquico de aplicação de quaisquer penas que não sejam de competência exclusiva do membro do Governo – art. 75, nº 8 do ED; o recurso hierárquico de actos de exclusão e da homologação da lista de classificação final no âmbito dos concursos de recrutamento e selecção de pessoal – arts. 43º nºs 1 e 2 do DL nº 204/98 de 11 de Julho).(…) A precedência obrigatória da impugnação administrativa mantém - se em relação aos casos especialmente previstos na lei. Poderá suscitar - se, neste caso a questão da inconstitucionalidade das disposições avulsas que estatuem uma reclamação ou recurso administrativo necessário, por violação da norma do art. 268º nº 4 da CRP. Todavia, quer o TC, quer o STA, têm mantido o entendimento da não inconstitucionalidade de tais normas, alegando que a eliminação do conceito de acto definitivo e executório e a sua substituição no texto do art. 268º nº 4 da CRP, pelo acto lesivo não impede o legislador ordinário de estipular pressupostos processuais específicos para a impugnação contenciosa dos actos administrativos.».Ainda em anotação ao art. 59º nº 5 do CPTA dizem os mesmos AA., na obra citada «O preceito afasta, pois, o requisito da definitividade vertical como pressuposto da impugnabilidade contenciosa ( do mesmo modo que o art. 51º nº 1, havia já afastado a definitividade horizontal ). Mas não põe em causa as normas que, no âmbito de procedimentos administrativos especiais, prevejam expressamente formas de impugnação administrativa necessária – reclamação, recurso hierárquico ou recurso tutelar …» (sublinhado nosso).Como se pode ler no Ac. deste TCAS de 16/03/2005, Rec. 07511/03, relativo a reclamação hierárquica necessária «A reclamação é um meio de impugnação graciosa de um acto administrativo junto do autor deste e tem por conteúdo o pedido de revogação ou de modificação de tal acto cfr. art. 158º., nos 1 e 2, al. a), do C.P.A. Consoante constituam ou não um pressuposto legal do recurso contencioso de certos actos, as reclamações classificam-se como necessárias ou facultativas. No caso em apreço, resulta claramente dos arts. 186º., 187º. e 188º., todos do E.M.G.N.R., que a reclamação precede necessariamente o direito de interpor recurso hierárquico, pelo que o recorrente só poderia interpor recurso hierárquico, para o Ministro da Administração Interna, do acto do Comandante-Geral da G.N.R. que tivesse decidido a reclamação (cfr. Ac. STA de 13/7/95 in BMJ 449º.-140). E esta conclusão impõe-se, quer o acto inicialmente praticado tenha resultado da iniciativa da Administração, quer tenha sido despoletado por um requerimento de um particular, pois nem os preceitos citados nem o C.P. Administrativo distinguem essas situações, não podendo, por isso, o intérprete distingui-las. » (bold nosso).Por sua vez, no Ac. do STA de 04/06/2009, Rec. 0377/08 expende - se o seguinte:« O disposto nos citados n.ºs 4 e 5 do art.º 59, epigrafado de "Início dos prazos de impugnação" (contenciosa), reporta-se, apenas, à utilização de meios de impugnação administrativa facultativos (recursos e reclamações não necessários), porquanto, tratando-se de impugnações necessárias, como é patente, o acto não é ainda passível de impugnação contenciosa não estando nenhum prazo a correr para esse efeito (veja-se o "Código de Processo nos Tribunais Administrativos", I, de Mário Esteves de Oliveira e outro, 391 e o acórdão STA de 22.3.07 no recurso 848/06). (bold nosso).(…)Evidentemente que estão excluídas por via do CPTA (essas acabaram definitivamente) as que não estivessem previstas e que a jurisprudência considerava necessárias apenas para executar a hierarquia e assegurar a definitividade vertical. (previstas na lei) que no regime antecedente eram tidas pelos tribunais, ainda que sem norma expressa, como necessárias. E, no entanto, esta é a verdadeira questão que a entrada em vigor do CPTA suscita.A solução, quanto a elas, terá, todavia, que ser idêntica. Com efeito, este Tribunal foi construindo uma corrente jurisprudencial que assentava fundamentalmente na constatação de que as reclamações que estivessem especialmente previstas eram, salvo determinação expressa da lei em contrário, qualificadas como necessárias, correspondendo a um passo que o interessado teria que dar caso pretendesse agir pela via judicial. Ora, se a jurisprudência do mais alto tribunal da Jurisdição Administrativa, de modo uniforme, primeiro com fundamentação doutrinal, depois com base em preceitos legais, elaborou um critério que lhe permitia distinguir as reclamações (previstas) que eram das que não eram necessárias, e não tendo o CPTA - todos o reconhecem - uma disposição expressa que as elimine é inquestionável que, após o CPTA, para além das expressamente contempladas na lei como necessárias, também o são as que anteriormente cumpriam o critério jurisprudencialmente definido de forma clara e inequívoca. Por outras palavras, se já havia um padrão para as reclamações anteriores ao CPTA dizendo que eram necessárias sempre que previstas, então esse padrão, pelo menos para essas, terá de manter-se, não sendo aceitável qualquer outra solução tendo em consideração os princípios que o enformam. Se o Código continua a admitir impugnações necessárias desde que previstas na lei como tais, têm que se considerar necessárias as que anteriormente eram consideradas como tendo essa natureza - justamente por estarem previstas na lei - apesar de não terem aposta essa menção expressa. Trata-se de situações idênticas que merecem idêntico tratamento. De resto, Esteves de Oliveira e outro, "Código de Processo nos Tribunais Administrativos", I, 347, referem-no, objectivamente, ao escreverem que "Devem, porém, considerar-se em vigor as disposições legais específicas anteriores ao CPTA que de modo claro (que não expresso, dizemos nós) tornavam a impugnação contenciosa dos actos praticados por órgãos subalternos dependente de prévia impugnação hierárquica, como nada obsta também a que o legislador venha a dispor expressamente, no futuro, para esta ou aquela espécie de actos administrativos, sobre a obrigatoriedade de sua impugnação hierárquica prévia".(…)Aquela construção jurisprudencial, erguida ao longo dos tempos, partia de uma constatação objectiva: se a reclamação facultativa sempre foi admitida, primeiro, só pela doutrina (por todos, Marcelo Caetano, "Manual", 9.ª edição, II, 1264) e depois pela própria lei (art.º 34 da LPTA e art.º 161 do CPA) como princípio geral, ela seria necessária sempre que uma lei avulsa previsse uma reclamação, ainda que não dissesse expressamente que se tratava de uma reclamação necessária, pois não faria qualquer sentido estar a prever algo que já era permitido. É justamente isso que se vê no sumário do acórdão STA de 2.12.99, proferido no recurso 45243 (o que, de resto, se pode ver em muitos outros, designadamente nos acórdãos de 17.1.01 e de 19.12.06, respectivamente, nos recursos 40567 e 825/06 da Secção e de 25.5.05, proferido no recurso 1652/02, do Pleno), "Quando a lei prevê em termos expressos uma reclamação graciosa, inserida em determinado trâmite a seguir no respectivo processo, impõe-se considerá-la, na falta de outra explicação adequada resultante da lei, como reclamação necessária, constituindo pressuposto do uso de ulterior meio de impugnação contenciosa". Portanto, equiparou-se essas situações àquelas em que o próprio legislador disse ser a reclamação necessária. Destarte, haverá de concluir-se que são necessárias as reclamações especialmente previstas em diplomas anteriores à entrada em vigor do CPTA que já eram assim consideradas. (bold nosso).(…)Pode, pois, assentar-se num conjunto de regras determinadas pela entrada em vigor do CPTA. Assim, apenas são admissíveis impugnações administrativas necessárias, após a vigência do CPTA, quando a lei o disser expressamente. Quanto às anteriores, só devem considerar-se necessárias aquelas cuja existência estivesse prevista na lei e fossem tidas (pela jurisprudência), por isso, como necessárias.».Assim, atentos os fundamentos exarados nos Acórdãos citados, os quais acompanhamos, que no caso em apreço e face ao disposto nos art. 120º do RD GNR, que a presente impugnação contenciosa tivesse de ser precedida de recurso hierárquico necessário para o Sr. Ministro da Administração Interna, sendo por isso condição necessária à procedência da presente acção especial.Ora, não tendo o A. interposto tal recurso hierárquico necessário no prazo consignado no mesmo art. 120º, é um facto que o acto em crise é inimpugnável contenciosamente, pelo que ao dessa forma ter decidido, a sentença em recurso não nos merece censura, não enfermando dos vícios que lhe são imputados pelo recorrente.IV – Pelo que, em face do exposto e em conclusão, emito parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso mantendo - se a sentença recorrida.