domingo, 19 de dezembro de 2010

A célebre querela Dicey vs Hauriou sobre os dois sistemas administrativos predominantes:a visão de Sabino Cassese

Em 1885, o constitucionalista inglês A.V. Dicey fez uma primeira análise às diferenças entre os dois sistemas proeminentes (o britânico e o francês); veio-se a gerar uma querela famosa a partir do momento em que o publicista francês Maurice Hauriou respondeu com a sua visão dessas diferenças.

Para Dicey, os dois sistemas eram incompatíveis porquanto o rule of law (“no man is above the law, (...), every man, whatever be his rank or condition, is subject to the ordinary law of the realm and amenable too the jurisdiction of the ordinary tribunals”) assentava na igualdade entre os particulares e a Administração, contrariamente ao droit administratif que pressupunha uma relação de desigualdade; Dicey acusava ainda os tribunais administrativos de não terem juízes imparciais mas sim autênticos funcionários públicos ao serviço dos interesses governamentais (sublinhando a ideia que os tribunais judiciais não tinham que fazer nenhuma distincção ente pessoas privadas e o Estado). Defendia Dicey que não existia em Inglaterra direito administrativo tal como era aplicado em França (quanto mais não fosse pelo facto de a aplicação desse direito continuar a pertencer aos tribunais comuns _ o que era condição para o rule of law).

Já Hauriou sublinhava a importância da função administrativa, de uma resposta eficiente às necessidades do interesse colectivo e de uma boa gestão de assuntos de utilidade pública. Mais, defendia que tanto a Inglaterra como França desenvolveram dois sistemas diferentes mas que garantiam o mesmo propósito: um modo de submeter a Administração ao direito. Para tal, a Inglaterra adoptara um État sans régime administratif, sem outra autoridade administrativa que não a do juiz ordinário (pelo que lhe chama système d’administration judiciaire). Em contraponto a este sistema possível, Hauriou apresenta o modelo francês, de État à régime administratif, o qual acaba por fazer uma marcada defesa pelo facto de o mesmo ter toda uma outra dimensão: desde logo, a existência de uma centralização de todas as funções administrativas num só poder executivo fazia que os agentes administrativos estivessem sob o controle da autoridade hierárquica dos chefes e a adstrição a regras administrativas próprias (e já não a leis comuns e ao julgamento de tribunais comuns); tal também permitia o privilège de l’éxécution d’office, também conhecido por procédure de la décision exécutoire sans autorization préalable de la justice (em que as autoridades administrativas tinham o poder de executar coercivamente as suas decisões independentemente de decisão jurisdicional). Por estas razões, bem como pelo facto de julgar saudável uma separação demarcada entre poder executivo e o poder judicial, Hauriou sustentava que este système de administration exécutive era o mais preferível.

Sabino Cassese, notável jurista italiano, avalia no seu “Le basi del dirito amministrativo” esta dicotomia entre os dois sistemas, trazendo uma visão diferente tanto de Dicey (que não encontrava nenhum de ligação com o droit administratif, pelo menos no início da querela).

Cassese vem comentar a posição de Albert Van Dicey (na sua opinião, o mais importante jurista inglês dos séculos XIX e XX _ de facto, Dicey influenciou decisivamente a realidade jurídica inglesa, tendo deixado um cunho ideológico liberal bastante marcado na sua doutrina), encontrando alguns pontos criticáveis na sua argumentação. Dicey era, inicialmente, tão firme na sua opinião que sustentava inclusive que “In England, we know nothing of administrative law; and we wish to know nothing”. De facto, para Dicey o droit administrative era um direito com regras especiais que criavam privilégios e que era manifestamente contra os princípios liberais. E, ele considerava que em Inglaterra deveria prevalecer um rule of law que se consubstanciasse num só direito, dito “ordinary law of the land” à qual todos os sujeitos deveriam estar adstritos, independentemente de terem uma natureza pública ou privada.

No entanto, esta tese, no entendimento de Cassese, era apenas parcialmente verdadeira: por um lado, em França, no último quarto do século XIX, houve um aumento da legislação administrativa; por seu lado, em Inglaterra existiam regras especiais (“official law”) apenas aplicáveis a autoridades públicas (Cassese dá o exemplo do princípio da imunidade da Coroa em matéria de responsabilidade ou o do privilégio do corpo diplomático e da polícia). Assim, a interpretação que Dicey fazia dos dois modelos não era a mais correcta: de facto, em Inglaterra já existiam regras e procedimentos especiais para o corpo administrativo.

No entanto, Dicey tinha razão quando estabelecia uma diferença premente entre os 2 modelos: de facto, se em França existiam juízes especiais (o que conferia à Administração uma autoridade reforçada), em Inglaterra apenas subsistiam os juízes comuns.

A verdade é que, com o passar do tempo, Dicey começou a atenuar a oposição entre o seu acérrimamente defendido “rule of law” e o tão criticado “droit administratif”: chegou mesmo ao ponto de sustentar que o direito administrativo “comes very near to law” (o que contrariava, quase por completo a sua visão inicial). Também acabou por admitir que a administração inglesa gozava igualmente de alguns privilégios especiais análogos aos da administração francesa e, pasme-se, que «recent legislation has occasionally, and for particular purposes, given to officials something like judicial authorithy» o que permite inclusive nalgumas circunstâncias, «which are rare, to see a slight approximation to “droit administratif”». Dicey acaba, no entanto, por aceitar definitivamente uma aproximação um pouco mais forte do que isso, ao publicar o artigo “The development of administrative law in England”.

Cassese conclui que, afinal, até para Dicey as diferenças dos dois sistemas não eram tão fortes quanto eram apontadas ao início por si próprio: além das diferenças no respeitante ao modo de aplicação jurisdicional do direito administrativo (por via de tribunais especiais ou apenas comuns), não havia assim tantas diferenças na prática a apontar.

Entre a nossa doutrina, relevamos ainda o sublinhar feito pelo prof. Vasco Pereira da Silva relativamente à necessidade da criação no Reino Unido dos “administrative tribunals” para um eficiente controlo da Administração (algo que não era tão eficaz quando o controlo era feito pelos tribunais comuns): esta medida exemplifica definitivamento o acolhimento, por parte do Reino Unido, de alguns procedimentos tão similares aos vividos numa fase inicial (Baptismo) do direito administrativo francês, que o professor veio a apelidar este estreitar de “ligações promíscuas” entre os tribunais e a Administração de “delinquência senil precoce”.

Terminamos com uma citação do prof. Freitas do Amaral, para resumir e ilustrar a presente exposição: “Tal diferença não pode significar, como queria Dicey, que em Inglaterra haja Estado de Direito e em França não. Neste ponto tinha razão Hauriou: os dois sistemas são distintos, mas são apenas duas espécies do mesmo género. Ou não fossem a Grã-Bretanha e a França duas democracias pluralistas de tipo ocidental”.

Bibliografia

- Introduction à l’étude du droit constitucionnel, 1885, Dicey (trad. Gaston Gèze)
- Le basi del dirito amministrativo, Sabino Cassese
- O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Vasco Pereira da Silva
- Curso de Direito Administrativo, Diogo Freitas de Amaral

João Gonçalves, nº 16431

Um exemplo actual e paradigmático da globalização do modo de actuação das Entidades Administrativas na Europa: na área do combate ao download ilegal

No âmbito da propalada globalização do direito administrativo e de uma crescente uniformização de procedimentos e actuações por parte das entidadas administrativas dos diversos países europeus, vimos trazer um exemplo, muito actual, e com bastante relevância social nos dias correntes, de uma medida administrativa que foi aplicada da mesma forma tanto em França como em Inglaterra, e que tenderá a ser copiada noutros países.

No âmbito do combate à pirataria na Internet _ nomeadamente no que concerne ao combate ao download ilegal _ (e da protecção dos direitos de autor), foram instituídas autoridades e procedimentos administrativos idênticos: nomeadamente a criação de uma autoridade administrativa com poderes para controlar a navegação dos particulares, estando prevista uma resposta gradual que se traduz num sistema de avisos ao particulare (e que culmina, em caso de persistência no incumprimento, numa sanção que pode ir até à suspensão do acesso à internet, decretada por um juiz).

Em França, respondendo ao célebre apelo do Presidente Nicolas Sarkozy, “a internet não pode ser o faroeste hi-tec, nem uma zona de não-lei”, veio a desencadear-se o procedimento legislativo que resultou na criação da lei Hadopi 2 (que se encontra actualmente em vigor).

Sublinhe-se que esta lei levantou um grande debate na sociedade civil, e levantou inúmeras questões no que toca à constitucionalidade do diploma: a 1ª versão desta lei foi inclusivamente chumbada por inconstitucionalidade (a Décision nº 2009-580 DC du 10 Juin 2009 do Conseil Constitutionnel colocou especial ênfase no desequilíbrio manifesto entre a protecção dos direitos de autor e o direito ao respeito da vida privada), mas a segunda versão acabou por ser acolhida.

Sublinhamos apenas a parte da Décision nº2009-590 du 22 Octobre 2009 (a qual se pronunciou no sentido da não inconstitucionalidade do novo diploma) em que se considerou que “a instauração de uma pena complementar destinada a reprimir os delitos de contrafacção cometidos por via de um serviço de comunicação ao público online e consistindo na suspensão do acesso a um tal serviço por uma duração máxima de um ano, aliada à interdição de subscrever, durante o mesmo período, um outro contrato tendo por objecto um serviço com a mesma natureza (junto de outro operador), não violava o princípio da necessidade da pena” (ponto 21 da decisão) e, também e particularmente, aquela em que considerou que nenhuma regra e nenhum princípio constitucional se opunha a que uma autoridade administrativa participasse à execução da pena de suspensão de acesso à Internet.

Ora, se em França a Loi Hadopi 2 instituiu a criação de uma autoridade administrativa com poderes para controlar a navegação dos particulares, aplicando um sistema de resposta gradual (que começa com um aviso da autoridade administrativa por e-mail, seguido de uma carta com aviso de recepção _ as quais têm suscitado uma vaga de processos nos tribunais administrativos, que questionam a validade desta medida administrativa), foi exactamente no mesmo sentido que seguiu o Reino-Unido, cuja lei do Parlamento Digital Economy Act 2010 impôs um modelo semelhante de resposta gradual: o controle administrativo estará, desta feita, a cargo do Office of Communications (aka Ofcom) e a pena mais grave, tal como em França, consiste na suspensão do acesso à Internet decretada por juiz.

Independentemente das questões que se prendem com os direitos de autor (até com a própria legitimidade para a sua existência, tout court) ou com a justeza deste procedimento administrativo, a verdade é que uma solução deste tipo (para o combate ao download ilegal) já está a ser equacionada em Portugal: a discussão já existe entre a indústria cultural e os especialistas em direito de autor e em criminalidade informática, tendo inclusivamente já sido apresentada uma proposta aos grupos parlamentares.

Fica à consideração de cada um se a implementação deste procedimento pode ser incluído na lista de exemplos da actual e generalizada “modernização da administração (na procura de eficiência, privatização, liberalização, aumento da criação de organismos administrativos independentes, mas também na procura de transparência, proximidade com o cidadão, aumento do uso de mecanismos de cooperação na tomada de decisão e auto-regulação)” que faz com que exista actualmente “uma verdadeira transformação e não apenas uma evolução no direito administrativo” (usando a expressão do jurista alemão Matthias Ruffert).

Bibliografia

La justice administrative à l’aube de la décennie 2010: quels enjeux? Quels défis?, intervenção de Jean-Marc, Sauvé, vice-presidente do Conseil d’État, na Conferérence nationale des présidents des jurisdictions admininistratives, de 10 de Setembro de 2010 http://www.conseil-etat.fr/cde/fr/discours-et-interventions/la-justice-administrative-a-l-aube-de-la-decennie-2010-quels-enjeux.html


The Transformation of Administrative Law in Europe, estudo do jurista alemão Matthias Ruffert, publicado no European Journal of International Law, http://www.ejil.org/pdfs/19/3/1633.pdf

Décision nº 2009-580 DC du 10 Juin 2009, do conseil d’Etat (sobre a inconstitucionalidade da lei Hadopi 1) http://www.conseil-constitutionnel.fr/conseil-constitutionnel/francais/les-decisions/acces-par-date/decisions-2009/2009-580-dc/decision-n-2009-580-dc-du-10-juin-2009.42666.html

Décision nº2009-590 du 22 Octobre 2009, do Conseil d’Etat (que se pronuncia no sentido da não inconstitucionalidade da lei Hadopi 2)
Do Conflito Negativo de Competência : Tribunal Administrativo vs Tribunal Tributário

-Acordão STA 0366/09, de 12-11-2009, Relator Jorge de Sousa

A hierárquia dos trinunais administrativos encontra-se establecida pelo ETAF da seguinte forma(art.8º):
-Supremo Tribunal Administrativo(art.11º e ss): Seccção de Contencioso Administrativo(art.24º) e Secção de Contencioso Tributário(art.26º)
-Tribunais Centrais Administrativos(art.31º e ss): Secção de Contencioso Administrativo(art.37º) e Secção de Contencioso Tributário(art.38º)
-Tribunais Administrativo de Círculo(art.39º e ss)
-Tribunais Tributários(art.45º e ss)

Existe um conflito negativo de competência quando dois ou mais tribunais da mesma espécie se consideram incompetentes para conhecer da mesma questão.O relevante nesse conflito é a existência da mesma questão, sendo indiferentes as razões pelas quais os mesmos tribunais declaram a sua incompetencia para a pratica do acto judicial assim como, as razões que imputem um ao outro para atribuirem competencia para a realização do mesmo.

Neste acordão, existe um conflito negativo de competencia em razão da matéria pois nem o Tribunal Tributário de Lisboa nem o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa se consideram competentes para o conhecimento da questão.Determina o ETAF que, quando surgem conflitos de competência nos tribunais administrativos e/ou tributários o tribunal competente para conhecer destas questões é o Supremo Tribunal Administrativo(art. 24º nº1 h) + art. 26º g)).

.Neste caso, estamos perante uma acção administrativa especial, com uma impugnação de um acto administrativo(despacho do Director-Geral de Geologia e Energia) cumulado com uma condenção da administração à prática de acto devido(redistribuição de quotas de biodisel isentas de ISP): Arts 46º nº 2 a) e b) + 47º nº 2 a) + 50º e ss + 66º e ss do CPTA.

Chamado a pronunciar-se o MP considerou: A competência (ou jurisdição) de um Tribunal afere-se pelo quid decidendum, seja, pelos objectivos prosseguidos pelo autor, que são, no recurso contencioso de acto administrativo, anular este com fundamento nos vícios que lhe aponta. Desde que na pretensão do recorrente assim definida não se apele a normas de direito fiscal, o conhecimento e julgamento do recurso é de atribuir à Secção do Contencioso Administrativo. Mesmo que o acto recorrido constitua acto pressuposto, que decida sobre questão prejudicial do reconhecimento de benefício fiscal, de iniciativa do interessado.

No entanto, o tribunal veio a decidir de forma diferente.Acaba por considerar que estamos perante um acto administrativo em matéria fiscal quando a administração visar com ele regular uma relação jurídica gerada no exercício da sua actividade destinada à aquisição de meios financeiros.
Neste caso, estavamos perante um processo que se reconduziria à atribuição de isenções fiscais aos interessados pelo que, se insere na actividade estadual de aquisição de meios financeiros, que tanto inclui a liquidação e cobrança de um Imposto como a definição do eventuais regimes de isenção.

Assim, o artº 212 nº 3 da CRP e 1º do ETAF atribui, aos tribunais administrativos e fiscais a competência para apreciação dos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.
O artº 49º nº 1 a) iv) atribui competência aos tribunais tributários para conhecer das acções de impugnação «dos actos administrativos respeitantes a questões fiscais que não sejam atribuídos à competência de outros tribunais».
Nos arts. 26.º, alínea c), e 38.º, alínea b), atribui-se ao Supremo Tribunal Administrativo e aos tribunais centrais administrativos competência para conhecer de «recursos de actos administrativos do Conselho de Ministros respeitantes a questões fiscais» e de «recursos de actos administrativos respeitantes a questões fiscais praticados por membros do Governo», respectivamente.

O tribunal acabou por concluir que o acto praticado tem por objecto uma questão fiscal e resolve este conflito negativo de competência declarando competente para o conhecimento do processo em causa, em 1º Grau de Jurisdição, o Tribunal Tributário de Lisboa.

Francisco Neves
Nº 15179

SENTENÇA da sub-turma 2

[Nota prévia para uma melhor compreensão do acórdão:
Apenas foram considerados os pontos da matéria controvertida escolhidos imediatamente antes do início do julgamento (os pontos 1, 2, 4 e 7 da base instrutória).

Relativamente às alegações sobre matéria de direito: uma vez que as partes haviam sido notificadas nos termos do nº1 do art. 91º (pelo que, durante a audiência, apenas havia lugar à discussão oral da matéria de facto _ e não da matéria de direito), considera-se que as alegações (“oficiosamente” proferidas oralmente no final a audiência) foram oficialmente remetidas pelas partes (tendo sido prévia e devidamente notificadas para tal) ao tribunal por escrito (e dentro do prazo de 20 dias), conforme previsto no art. 91º nº4 do CPTA.]

Processo nº1111/11.1TALSB Acção Administrativa Especial
Sentença Data: 18 Dezembro de 2010
Intervenientes:Autor: Somos de Inteira Confiança Lda.
Réu: Ministério da Administração Interna

ACTA DE AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
A 16 de Dezembro de 2010 no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, verificou-se estarem presentes os representantes do Autor, as testemunhas arroladas pelo Autor, Sílvia Boto e Roberto Pereira, os representantes do demandado e a testemunha arrolada pelo demandado, João Esteves.

SENTENÇA
I – RELATÓRIO
Somos da Inteira Confiança LDA., pessoa colectiva portadora do NIPC 500344521, com sede na Rua das Palmeiras, n.º 254, 2780-151 em Oeiras, representada por Manuel Videira, sócio-gerente, portador do B.I. n.º13122243, residente na Rua Quinino da Fonseca nº 29, 4º Esq. 2100-251 Lisboa, instaurou a presente acção contra Ministério da Administração Interna, pessoa colectiva portadora do NIPC nº 565 565 234, com sede na Rua Castilho, 45-51, em Lisboa vem pedir a anulação do procedimento escolhido para a aquisição dos veículos blindados à empresa Dusseldorf.

No prazo legal, os demandados deduziram contestação por excepção e por impugnação, peticionando, a final, a improcedência da acção bem como a condenação dos autores no pagamento de custas e demais despesas processuais a que deu causa a acção.

Prosseguiram os autos para julgamento, que se realizou com observância do formalismo legal.


II – FUNDAMENTOS

2.1. FACTOS PROVADOS

A julgamento chegou como assente a seguinte matéria de facto:
a. foi celebrado entre o MAI e a empresa alemã Dusseldorf um contrato de fornecimento de 8 veículos blindados, no valor de 1.2 milhões de euros;
b. os veículos destinavam-se a ser usados durante a Cimeira da NATO, a decorrer em Lisboa nos dias 19 e 20 de Novembro de 2010;
c. tinham como objectivo o reforço da segurança do local onde se iria realizar a Cimeira;
d. o procedimento concursal adoptado foi o ajuste directo em detrimento do concurso público;
e. os veículos não foram entregues dentro do prazo estipulado (15 de Novembro de 2010), a tempo de serem usados na segurança da Cimeira da NATO;
f. apesar da extemporaneidade do fornecimento dos veículos o contrato manteve-se.

Durante a audiência, foram dados como provados os seguintes pontos
a) o A. é uma empresa de fabrico de equipamentos blindados;
b) ao A. não foi possibilitado concorrer legitimamente;
c) o A. apenas teve conhecimento da adjudicação dos veículos blindados em Outubro de 2010, por via de uma reportagem do canal televisivo SIC, realizada sobre matérias de segurança ;
d) pela mesma reportagem soube o A. que o procedimento concursal adoptado na compra dos veículos blindados tinha sido o ajuste directo;
e) em Janeiro 2010, os veículos já estavam a ser fabricados pela empresa Dusseldorf

2.2 DO DIREITO APLICÁVEL

O autor, veio a este tribunal, alegar que o acto de adjudicação por ajuste directo de fornecimento de veículos blindados da empresa Dusseldorf com o MAI é anulável ao abrigo do artº 135º do Código Procedimento Administrativo, doravante CPA. Argumenta o Autor que, devido à escolha por ajuste directo, foi impedido de realizar melhor oferta para a aquisição dos ditos veículos blindados.

O demandado, Ministério da Administração Interna, doravante MAI, alegou a compra dos veículos blindados para a Cimeira da NATO a realizar em Lisboa, nos dias 19 e 20 de Novembro, com base no artº 24º/ 1/f) do Código dos Contratos Públicos, doravante CCP.
De acordo com a regra geral do artigo 23º CCP, não é o valor do contrato relevante para esta causa, uma vez que se entende, no caso concreto, que as vantagens através dele obtidas, devem ser preteridas face a valores de natureza pública mais relevantes, nomeadamente o da urgência.
Dever-se-á entender que não é o valor do contrato que condiciona a escolha do procedimento a adoptar, mas sim o contrário, ou seja, o valor do contrato não pode ser superior ao valor máximo que a lei permite para a utilização do procedimento escolhido (artº 17ºCCP). O procedimento escolhido para aquisição das viaturas blindadas por parte do MAI, foi o ajuste directo que de acordo com o artigo 20º/1/a) CCP, só é permitido para a aquisição de bens móveis.

Segundo o demandado, aplica-se ao caso o artº 24º/ f) CCP, dispondo este que qualquer que seja o objecto do contrato a celebrar, pode adoptar-se o ajuste directo quando, nos termos da lei, o contrato seja declarado secreto ou a respectiva execução deva ser acompanhada de pedidos especiais de segurança bem como, quando a defesa de bens essências do Estado o exigir. O contrato em causa não era secreto já que, como ficou provado, a jornalista Sílvia Boto teve dele conhecimento numa mera visita à fábrica alemã. Tão pouco a respectiva execução foi acompanhada de medidas especiais de segurança, uma vez que, com a respectiva autorização da empresa estrangeira, foi realizada uma reportagem televisiva pela dita testemunha em Janeiro de 2010. A reportagem em causa veio posteriormente a ser transmitida pelo canal de televisão “SIC”, em Outubro de 2010, onde foi divulgado que já havia sido efectuado o contrato entre a dita empresa e o estado português.

Relativamente à parte final do artº 24º/1/f) do CCP confrontamo-nos com um conceito indeterminado: (…) bem como quando a defesa de interesses essenciais do Estado o exigir. Para tal, foi arrolada pelo demandado a testemunha João Esteves, especialista em segurança internacional. Todavia, apesar da tentativa de descoberta de toda a verdade material, este depoimento não pôde ser valorado, visto que João Esteves foi arrolado como testemunha e não na qualidade de perito. Não haveria pois a considerar qualquer ponto de vista técnico por si oferecido: de facto, nos termos do art. 638 nº1 do Código de Processo Civil, a testemunha só devia responder com precisão sobre os factos que haviam sido articulados ou impugnados pela parte que a ofereceu (não devendo emitir pareceres de acordo com os seus especiais e qualificados conhecimentos sobre a matéria controvertida: essa função de tecer esclarecimentos técnicos especiais pertenceria, sim, a um perito requerido para esse efeito).
Como tal, concluiu-se que não terem sido dados como fundamentados os pressupostos para a aplicação do artº em causa.

De igual modo se provou não haver urgência na contratação, na medida em que os veículos em causa já estariam a ser produzidos em Janeiro, sendo que não foi produzida prova em como o contrato entre o demandado e a empresa Dusseldorf foi realizado em Outubro.
Assim sendo, concluiu-se não ter sido feita respectiva fundamentação legal para a decisão da escolha do procedimento (a qual, como qualquer acto administrativo, carecia de fundamentação). O art. 38º do Código dos Contratos Públicos exige que a decisão de escolha do procedimento de formação de contratos seja devidamente fundamentada, cabendo tal justificação ao órgão que era competente para a decisão de contratar: e, com as provas trazidas a este Tribunal, não conseguiu o MAI fazer prova de que existia um fundamento atendível para a escolha que tomou.
Pelo exposto, deverá decidir-se no sentido da procedência do pedido na P.I.


2.3 DECISÃO

Nestes termos, julga o presente colectivo de juízes a presente acção procedente, decidindo, em consequência disso:
a) a mera declaração da anulação do acto administrativo da escolha de ajuste directo no procedimento de formação do contrato entre o MAI e a empresa Düsseldorf: não tendo sido pedido cumulativamente qualquer acto de condenação da Administração, tem a presente sentença o efeito único de declarar anulado o mencionado acto administrativo.
b) condenar a ré no pagamento das custas decorrentes do presente litígio
c) ordenar o registo e notificação da presente sentença

___________________________________________________

Da sentença que antecede foram os presentes notificados.
Para constar se lavrou a presente acta, que lida e achada conforme vai ser assinada.

A Escrivã-Auxiliar
M.

Lisboa, 19 de Dezembro de 2010,
O Juíz de Direito
(segue assinatura digital)
Abímal Nanu
Ana Margarida Rodrigues
Bernardo Rodrigues
Carlos Ferreira
Cláudia Magalhães
João Gonçalves
João Serrano
Nuno Espírito Santo
Paulo Fonseca
Raphael Faria
Sónia Martins
Teresa Tavares

sábado, 18 de dezembro de 2010

O Contencioso Administrativo Nacional de 1976 até à reforma de 2004
Entre nós, deu-se a introdução do modelo francês de justiça administrativa, em 1832, pelo Decreto n.º 23 de 16 de Maio ( Decreto de Mouzinho da Silveira ), em que basicamente proibia os tribunais comuns de julgarem a Administração.
Até 1933 vive-se um período de grande instabilidade, oscilando a atribuição de resolução de litígios a orgãos administrativos especiais ou a tribunais comuns.
Verifica-se uma lenta transição do sistema de administrador juiz ou de justiça reservada para um sistema de tribunais administrativos ou judiciais.
De 1933 a 1976 a lógica de funcionamento era a da “ justiça delegada “ ou até de “ justiça reservada “, já que algumas decisões do tribunal necessitavam de homologação do governo para serem executadas. As instituições denominavam-se por Auditorias Administrativas e Supremo Tribunal Administrativo, e estavam no exercício de uma função jurisdicional, mas, na realidade eram órgãos da Administração, faziam parte da estrutura orgânica da Presidência do Conselho de Ministros e os juízes dependiam funcionalmente do governo.
Vamos analisar o percurso do Contencioso Administrativo 1976 a 2004, evidenciando as alterações surgidas na Constituição e a actuação do legislador ordinário.
O Contencioso Administrativo tem uma relação dupla com o Direito Constitucional. Não é mais que Direito Constitucional aplicado, e este serve de padrão de actuação do primeiro, submetendo-se o Contencioso Administrativo às suas regras.
O Direito Constitucional também depende do Contencioso Administrativo na medida em que compete à Administração e aos Tribunais um papel decisivo na realização dos direitos fundamentais.
Podemos afirmar que o Contencioso Administrativo é Direito Constitucional aplicado. No entanto, seria mais correcto afirmar que, no período de 1976 a 2004, o Contencioso Administrativo foi mais concretamente Direito Constitucional por aplicar. Esta realidade foi-se agravando com o decurso do tempo. À medida que o legislador ordinário não acompanhava o texto da Constituição, foi crescendo o fosso entre o Direito Constitucional e o Contencioso Administrativo, questão resolvida só em 2004.


A Constituição de 1976
Com esta dá-se inicio ao movimento de constitucionalização do Contencioso Administrativo, que será continuado pelas posteriores revisões constitucionais.
Curioso é reparar a diferença ocorrida em Portugal em relação aos demais países europeus. Entre nós a fase de constitucionalização de uma concepção subjectivista do Contencioso Administrativo coincidiu com a da jurisdicionalização. Enquanto que na generalidade dos países europeus a jurisdicionalização ocorreu no advento do Estado Social, portanto muito mais cedo que em Portugal, e mais tarde a da Constitucionalização, na generalidade dos países na década de 70.
Nesta estabelece-se a jurisdicionalização plena e integral do Contencioso Administrativo, 202.º, e a consagração da tutela plena das relações entre particulares e Administração, n.ºs 4 e 5 do 268.º
Verifica-se um duplo compromisso, quer ao nível da Justiça Administrativa, assegurando um direito efectivo de recurso aos tribunais, quer ao nível da noção de acto administrativo.Ao nível da Justiça Administrativa institui-se um novo modelo jurisdicionalizado, visando a tutela dos direitos dos particulares, manifestado pela qualificação dos tribunais administrativos como verdadeiros tribunais e o seu acesso passa a ser considerado um direito fundamental.
Em relação ao acto administrativo a mudança é menos ambiciosa:
a) permanece a ideia de auto controlo da Administração mais forte do que a da protecção dos particulares, embora se verifique o embrião desta, ao ser permitido aos particulares o recurso de anulação ( apenas ), não existindo ainda outros meios processuais;
b) mantém do regime anterior a necessidade de o acto ser definitivo e executório, para ser recorrível;

Dá-se assim inicio à caminhada da afirmação plena da concepção subjectivista, verificando-se nesta fase um predomínio desta, embora muito marcada pela concepção objectivista, muito ligada ainda à noção de auto controlo da Administração.
Carecem as disposições da Constituição de concretização do legislador ordinário, o Dec. Lei. n.º 256-A/77, vem dar o seu contributo com vista à instauração do constitucionalmente previsto. Este decreto vem regulamentar os regimes de fundamentação dos actos administrativos, das omissões e sua impugnação contenciosa, e da execução das sentenças dos tribunais administrativos.
Este Dec. Lei. ficou aquém das expectactivas no sentido em que não deu cumprimento às novas exigências preceituadas na Constituição. Apesar da critica apresentada foi uma medida legislativa imprescindível, importante, pois dava inicio às imprescindíveis reformas legislativas.
Na mesma linha de actuação esteve a jurisprudência, alinhando a sua actuação pela falta de ambição do legislador ordinário, impedindo a prática constitucional de acompanhar o texto fundamental.

Revisão de 1982
Característica dominante desta revisão constitucional foi a acentuação da protecção jurídica individual. Apesar de continuar a consagrar uma garantia de recurso contencioso, com fundamento em ilegalidade, contra quaisquer actos definitivos e executórios, vem acrescentar dois novos elementos: que diga respeito a tais actos, “ independentemente da sua forma”; bem como para “ obter o reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido”.
Ora este reconhecimento tem implícita uma acentuação da dimensão subjectiva do Contencioso Administrativo..
A reforma legislativa de 1984/85 e a prática constitucional vão reconhecer a necessidade de criar outros meios processuais, de modo a dar uma maior amplitude à protecção desses direitos ou interesses legalmente protegidos, para que a forma de reagir contra a prática da Administração não esteja cingida ao recurso de anulação.
Também ao nível do acto administrativo a postura constitucional mudou, agora apesar de ainda se manter a necessidade do acto ser definitivo e executório, é permitida a impugnação de decisões individuais e concretas, ainda que disfarçadas de acto legislativo.
Adopta-se uma concepção material de acto administrativo, sendo tido em conta a actuação da Administração em detrimento da forma, privilegiando a função em vez do poder, sendo assim alargada a amplitude do controlo jurisdicional a todas as decisões das necessidades colectivas.
Consagra também o direito à notificação e à fundamentação das decisões administrativas.
O Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, D.L. n.º 129/84, de 27 de Abril e a Lei de Processo dos Tribunais Administrativos D.L. n.º 267/85, tiveram como objectivo regular a justiça administrativa de acordo com as opções constitucionais de 76 e de 82, de plena jurisdicionalização e de protecção jurídica subjectiva.
Esta reforma legislativa foi muito importante, no entanto é de se lhe apontar o facto de não ter procedido à revogação global da legislação reguladora do contencioso administrativo, tendo assim, contribuído para uma situação de geradora de dúvidas, dificuldades e incongruências.

Revisão de 1989
Na revisão de 1989 verifica-se, uma vez mais o acentuar do compromisso constitucional no caminho da plena jurisdicionalização e subjectivização.
Na Constituição de 1976 estava prevista a possibilidade de os tribunais administrativos e fiscais, virem a constituir uma jurisdição própria, ficando esta ao critério do legislador ordinário. A constituição de 1989 ( artigos 211º e 214º ), estabelece esta medida, deixando de ser uma mera possibilidade.
O texto fundamental afasta de uma vez por todas a perspectiva clássica processual, em que o Contencioso Administrativo gira em redor de um acto, para passar a considerar como sujeitos processuais o particular e a Administração, tendo como principal objectivo a protecção dos direitos individuais. Adopta também, agora do ponto de vista substantivo a adopção da relação jurídica como a nova figura central, afastando a concepção actocêntrica. O particular deixa de ser um mero administrado, um destinatário, para passar a ser um sujeito de direito que estabelece relações com a Administração.
A garantia do recurso contencioso era completada por outro direito fundamental, o do acesso à justiça administrativa, independentemente do meio processual que estivesse em causa. Isto porque o Contencioso Administrativo não se esgota no recurso de anulação tendo antes de ser completado por outros meios processuais que permitissem a tutela do particular em qualquer relação jurídica com a Administração.
Tínhamos assim, como resultado da conjugação destes dois direitos fundamentais, a consagração do princípio da tutela plena e efectiva dos direitos dos particulares, destinada a garantir os seus direitos nas relações jurídicas administrativas.Uma vez mais verifica-se uma inexistência absoluta de concretização das opções constitucionais. O legislador ordinário não criou os meios necessários a assegurar a tutela plena e efectiva dos direitos dos particulares, ao não alterar o regime jurídico dos meios processuais e ao não permitir o alargamento dos actos impugnáveis.
A reforma legislativa entretanto surgida, Lei n.º 83/95 de 31 de Agosto ( Lei de Acção Popular e o D.L. n.º 229/96 de 21 de Março ( altera o ETAF ),ficou marcada por uma abordagem muito limitada, introduzindo apenas alterações em aspectos parcelares, como que estando expectante por uma verdadeira reforma do Contencioso Administrativo.
Situação que o Professor Vasco Pereira da Silva considera como de “… grave omissão do legislador…”, afirmando que este é um exemplo em que o Contencioso Administrativo é Direito Constitucional por concretizar e não Direito Administrativo concretizado, como seria de supor.
O Contencioso Administrativo continuava assim refém de um legislador preso ao passado, permitindo que o modelo constitucional do Contencioso Administrativo e a sua realização legislativa se continuassem a afastar. A jurisprudência esteve sempre ao lado do legislador ordinário, como que aguardando pelas medidas legislativas, ao invés de fazer juízos de inconstitucionalidade ou de interpretações conformes à Constituição. Contribuindo, ora activa ora passivamente, para a manutenção desta inconstitucionalidade por omissão, revelada pelo agudizar do fosso entre os modelos de Contencioso Administrativo Constitucional e o de Contencioso Administrativo legislado.

Revisão de 1997
Esta revisão vem introduzir outra alteração ao compromisso constitucional, uma vez mais no sentido da jurisdicionalização e subjectivização.
Agora, de acordo com o artigo 268.º, n.º 4, todo o contencioso administrativo gira, já não redor do acto, mas em redor da tutela judicial plena e efectiva dos direitos dos particulares; O juiz goza de todos os poderes necessários e adequados à protecção dos direitos dos particulares, independentemente dos meios processuais que estiverem em causa, ou de se tratar de tutela principal, cautelar ou executiva.
Os poderes do juiz, já não estão limitados à anulação dos actos administrativos, estamos perante um Contencioso pleno e subjectivo, em que os efeitos das sentenças dos tribunais administrativos não se defrontam com qualquer limitação, devendo apenas ter como objectivo a protecção dos direitos dos particulares merecedores de tutela.
Tal como na revisão de 1989 o legislador ordinário não acompanhou a evolução do texto fundamental. Se desde 1989 a situação era grave e necessitada de uma intervenção legislativa urgente, urgência que já levava 8 anos de existência… Tal situação leva o Professor Vasco Pereira da Silva a considerar a inconstitucionalidade por omissão agora como “..agravada…”, já que esta inconstitucionalidade respeitava já a duas revisões constitucionais. Efectivamente, podemos considerar esta inconstitucionalidade de “dupla” ou que o legislador ordinário “já levava uma volta de avanço” do legislador constituinte.
Em 1999 surge o Código de Procedimento de Processo Tributário ( Decreto-Lei n.º 433/99, de 26 de Outubro, sendo de lamentar a sua falta de oportunidade, pois cabimento teria que este tivesse surgido aquando da reforma de todo o Contencioso Administrativo, já que se integram na mesma ordem jurisdicional. Sendo também de lamentar que este diploma não tenha sido tido em conta aquando dessa reforma, nomeadamente pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, “ Estatuto dos Tribunais Administrativo e Fiscais “.
Mais grave ainda é o facto deste código provir do governo sem que tenha havido a necessária autorização legislativa por parte da Assembleia da República, já que este versa sobre direitos, liberdades e garantias dos particulares.
Assim chegados ao final do sec XX vive-se um ambiente em que o legislador ordinário bem como a jurisprudência ignoram o texto fundamental, pondo em causa a efectividade da Constituição.
A Lei 13/2002 de 19 de Fevereiro ( ETAF ) e a Lei 15/2002, de 22 de Fevereiro ( CPTA ), após várias vicissitudes, entram em vigor em Janeiro de 2004, sendo que ainda sofreram duas alterações antes de entrarem em vigor.
Em face da reforma do Contencioso Administrativo, podemos considerar que, finalmente a legislação ordinária respeita o texto fundamental, no que diz respeito à realização do principio da protecção plena e efectiva dos direitos dos particulares através dos meios processuais principais, cautelares e executivos.
Bernardo Rodrigues, aluno 17613, subturma 2.

Processos Urgentes

Processos Urgentes.

O legislador instituiu mecanismos de resolução célere e flexível dos litígios da justiça administrativa, por necessidade de urgência e por forma a garantir a utilidade da justiça.
Nesse sentido optou por uma tramitação simplificada e mais célere, por forma a contornar o tempo, que em muitos casos excede o razoável da justiça administrativa.

Existem quatro formas especiais de processos instituídas, justificadas legalmente pelas razões de celeridade na obtenção de uma pronúncia sobre o mérito da causa por forma mais célere do que a que resulta da tramitação normal.
Estes processos, contrariamente aos cautelares, decidem definitivamente o mérito da causa.
No actual contencioso administrativo urgente, desdobra-se em processos principais e em providências cautelares, que são caracterizadas pela acessoriedade ou instrumentalidade face ao processo principal, pretendendo-se que seja cautelarmente / provisoriamente regulada a questão em termos de se poder assegurar a utilidade da sentença em tempo que se entende normal.
Convém não olvidar, que estão em causa direitos fundamentais dos cidadãos, o direito a um processo célere e prioritário, face ao disposto no art.º 20 nº 5 da Constituição da República Portuguesa, bem como uma tutela jurisdicional dos direitos ou interesses legalmente protegidos, incluindo, nomeadamente, o reconhecimento desses mesmos direitos ou interesses, assim como, a impugnação de quaisquer actos administrativos que lesem o administrado, independentemente da sua forma.

A finalidade dos processos urgentes resulta da necessidade de salvaguardar tanto interesses públicos como privados.
Visa por um lado promover a transparência e a concorrência, com a protecção adequada, aos interesses dos candidatos à celebração de contratos com as entidades públicas, e por outro garantir a estabilidade dos contratos da administração após a celebração, conferindo protecção aos interesses públicos em causa e interesses dos contraentes.
Mas quais são os processos urgentes? São quatro…
1- Contencioso Eleitoral – art. 36ºnº1 e art.97º ao 99º CPTA;
A lei autonomiza este meio impugnatório como acção principal para a resolução célere das questões suscitadas por actos eleitorais em função da sua natureza urgente.

O objecto, são as eleições que respeitem a organizações administrativas, desde que não tenham sido subtraídas à jurisdição Administrativa, aquelas através das quais se designam os titulares de órgãos administrativos electivos de pessoas colectivas públicas.
Existe impugnação autónoma da recusa de admissão de listas ao sufrágio;
Considera-se ainda impugnável a inscrição indevida de “eleitores” e a admissão indevida de candidatos ou candidaturas, de forma à estabilização do universo eleitoral;
A impugnação unitária deve ser interpretada como referida a cada acto eleitoral mesmo quando se trata de actos eleitorais intercalares ou não definitivos;

A legitimidade cabe em exclusivo aos eleitores e elegíveis.
Relativamente ao prazo, na falta de disposição especial é de sete dias, a contar da possibilidade do conhecimento do acto ou da omissão.

Segue a tramitação de acção administrativa especial, com especificidades, designadamente as decorrentes do seu carácter urgente (artº 99).

2- Contencioso pré-contratual – art. 36 nº1 b) e art.100º ao 103º CPTA;

Impugnação de actos administrativos relativos à formação de empreitada, concessão de obras públicas, prestação de serviços e fornecimento de bens.

Relativamente ao Objecto, este meio deve ser utilizado quando esteja em causa a ilegalidade de quaisquer decisões administrativas relativas á formação dos referidos contratos.

O prazo consta do artigo n.º 101 do CPTA (um mês a contar da notificação dos interessados ou do conhecimento dos actos, não havendo lugar à notificação).

Segue a tramitação da acção administrativa especial com algumas alterações.

3 - Intimação para a prestação de informações, consulta de processos ou passagem de certidões – art. 36º nº1 c) e art. 104º ao 108º CPTA;

Trata-se de processos urgentes de condenação, que visam a imposição judicial, em regra dirigida à administração, da adopção de comportamentos (acções, omissões, operações materiais ou simples actos jurídicos) e prática de actos administrativos.

A Legitimidade à intimação pode ser pedida pelos titulares dos direitos de informação ou, na hipótese de utilização para efeitos de impugnação judicial, por todos os que tenham legitimidade para usar os meios impugnatórios (incluindo os autores populares e o Ministério Publico).

A legitimidade passiva cabe à pessoa colectiva ou ao Ministério a que pertence o órgão em falta (artº 10 – nº2).

Em relação ao pedido prévio e prazo, note-se que a utilização deste meio pressupõe o incumprimento pela administração do dever de informar ou de notificar, valendo por isso a exigência do pedido anterior do interessado como pressuposto processual.

O prazo é de vinte dias, a partir da não satisfação do pedido, da omissão, do indeferimento expresso ou do deferimento parcial (artº 105).

A tramitação é simples, com a resposta no prazo de 10 dias, em relação á decisão do Juiz é imediata.

Em caso de provimento a decisão é condenatória e o juiz deve fixar um prazo de dez dias para o cumprimento da intimação, não obstante a possibilidade de sanções pecuniárias compulsórias em caso de incumprimento injustificado, sem prejuízo da responsabilidade civil, disciplinar ou criminal do órgão ou do seu titular (art.º 108).

4 - Intimação para protecção de Direitos, Liberdades, Garantias – art. 36º nº1 d) e Art.109º ao 111º CPTA.

Existem ainda intimações para a protecção de Direitos Liberdades e Garantias, que se justificam pela especial ligação desses direitos à dignidade da pessoa humana.

Pode utilizar-se este meio com vista à emissão célere de uma decisão de mérito do processo que imponha a administração uma conduta positiva ou negativa que seja indispensável para assegurar em tempo útil o exercício de um direito liberdade ou garantia.

Tem legitimidade para a intimação os titulares dos direitos liberdade e garantias, enquanto posições jurídicas subjectivas, pode também admitir-se a acção popular.

O conteúdo do pedido é a condenação na adopção de uma conduta positiva ou negativa por parte da administração (artº109, nº1 e nº3).

A legitimidade passiva pertence à pessoa colectiva ou Ministério a que pertence o órgão em falta.

Em relação à tramitação e a sentença, apesar de constituir um processo principal em que se visa uma decisão de fundo, a tramitação é extremamente simples e rápida.
Note-se que a lei prevê vários andamentos possíveis para os processos (n.t artº 110 e 111).

Na execução das sentenças, aplicam-se a estas intimações as regras gerais de execução de sentenças condenatórias.
Uma importante nota, é que as decisões de improcedência de pedidos de intimação para a protecção de direitos liberdades e garantias são sempre recorríveis seja qual for o valor da causa (art.º 142, nº3, alínea a).

Estes pedidos de impugnação seguem os trâmites do modelo da acção administrativa especial (cf. art.º 46º e segs. CPTA), com algumas particularidades decorrentes da natureza urgente do processo, cf. art.º 102º nº1 do CPTA.

Abímal Almeida
Aluno 17605, turma 2

Âmbito da Jurisdição Administrativa

O âmbito da jurisdição administrativa vem definido pelos critérios enunciados no artigo 4.º do ETAF, norma que atribui aos tribunais administrativos competência para julgar actos pré-contratuais e contratos, praticados ou celebrados ao abrigo de normas de direito público (alíneas e) e f) do art. 4.º ETAF).

O ETAF concede competência aos tribunais administrativos para julgar contratos celebrados entre pessoas colectivas de direito público, entre estas e pessoas colectivas de direito privado, ou ainda, entre diversas pessoas colectivas de direito privado.

São da competência dos tribunais administrativos as questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos, quando se configure uma situação de competência para julgar pedidos de indemnização fundados em responsabilidade extracontratual do Estado ou dos seus órgãos, funcionários, agentes ou servidores (alíneas g), h) e i) do n.º 1 do art. 4.º ETAF).

Competência aos tribunais administrativos para julgar pedidos de indemnização fundados em actos praticados no exercício das funções jurisdicional e legislativa, embora seja excluída a competência para os processos de impugnação dos actos causadores dos danos (cfr. alínea a) do n.º 2 do art.4.º), facto que só se justifica em virtude da plena autonomia das acções de impugnação face às acções de responsabilidade (cfr. n.º 1 do art. 38.º CPTA).

Quanto à responsabilidade fundada no exercício da função jurisdicional, a responsabilidade do Estado e a correspondente acção de regresso fundadas em erro judiciário apenas se inclui no contencioso administrativo quando respeite a facto resultante da actividade dos tribunais administrativos (a alínea a) do n.º 3 do artigo 4.º ETAF).

Exclui-se do âmbito da jurisdição administrativa a competência para a fixação de indemnização na sequência de expropriação por utilidade pública, que se mantém nos tribunais comuns.

Competência também para resolução de Litígios entre pessoas colectivas de direito público e entre órgãos públicos (alínea l) do n.º 2 do artigo 4.º ETAF).

O ETAF prevê de forma clara e expressa a competência dos tribunais administrativos para a resolução de litígios entre pessoas colectivas de direito público e entre órgãos públicos, no âmbito dos interesses que lhes incumbe prosseguir.

Execução de sentenças administrativas (alínea n) do n.º 2 do artigo 4.º ETAF).

Os tribunais administrativos detêm competência plena e exclusiva para execução das suas próprias sentenças, uma configuração de meios processuais verdadeiramente executivos no novo modelo de contencioso administrativo.

O ETAF exclui, todavia, do âmbito da jurisdição administrativa: a apreciação de litígios resultantes de contratos de trabalho que não confiram a qualidade de agente administrativo, mesmo que uma das partes seja uma pessoa colectiva pública (alínea d) do n.º 3 do artigo 4.º ETAF); a fiscalização de actos materialmente administrativos praticados pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça (alínea b) do n.º 3 do artigo 4.º ETAF);a fiscalização de actos materialmente administrativos praticados pelo Conselho Superior da Magistratura ou pelo respectivo Presidente (alínea c) do n.º 3 do artigo 4.º ETAF).