quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo - 0487/10 - Legitimidade

Sumário:

I – O autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar, sendo considerado titular do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.

II – Sendo inequívoca a legitimidade deste, apresentada petição inicial subscrita por mandatário judicial com procuração outorgada por quem já não detinha poderes para o efeito, estamos perante uma situação de irregularidade do mandato, e não de ilegitimidade, a qual pode, em qualquer altura, ser oficiosamente conhecida pelo tribunal, nos termos do artigo 40.º do CPC, competindo ao juiz fixar o prazo dentro do qual deve ser suprida a falta ou corrigido o vício e ratificado o processado.

Texto Integral:

Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

I – A…, com os sinais dos autos, não se conformando com a decisão da Mma. Juíza do Tribunal Tributário de Lisboa que absolveu a R. da instância na acção administrativa especial por si apresentada, dela veio interpor recurso para este Tribunal, formulando as seguintes conclusões:

I- De acordo com o dispositivo da sentença é peremptório que a Meritíssima Juíza de Direito considerou verificada a excepção dilatória da ilegitimidade activa, e nessa medida absolveu o réu da instância.

II- Na verdade, a Meritíssima Juíza de Direito considerou que a acção foi intentada por parte ilegítima, visto que a procuração forense foi outorgada pela Exma. Senhora B… e não, conforme deveria, pelo Exmo. Senhor C…, atenta a dissolução da sociedade.

III- Porém, não considero que a Meritíssima Juíza tenha analisado correctamente a questão. Respeitosamente, ajuízo que há erro de julgamento, por errada apreciação dos pressupostos de direito, visto que não nos encontramos face a uma questão de ilegitimidade, mas sim de irregularidade de representação da sociedade.

IV- Na verdade, quem figura no lado activo, enquanto autora, é a sociedade A…, logo quem efectivamente deveria figurar.

V- Porém, o problema coloca-se porque nos encontramos face à outorga de uma procuração por quem já não detinha poderes para o efeito.

VI- No fundo, a questão coaduna-se não com a falta de legitimidade processual, mas com uma irregularidade na concessão de mandato forense, a qual deveria e poderia ter sido suprida, logo sanada, caso a Meritíssima Juíza de Direito, em ordem ao princípio da colaboração e do pró actione tivesse concedido um prazo legal para a ratificação da procuração forense.

VII- De resto, é jurisprudência unânime do STA que: «No âmbito da ponderação dos pressupostos processuais, os princípios antiformalista, “pró actione” e “in dúbio pró favoritate instanciae” impõem uma interpretação que se apresente como a mais favorável ao acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efectiva», proferido no âmbito do processo 0850/07, de 30 de Abril de 2008.
VIII- Rigorosamente, não se arbitra que a questão contenda com uma ilegitimidade processual.
Pois, vejamos.

IX- Decorre do artigo 9.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos:
«Sem prejuízo do disposto no número seguinte e do que no artigo 40.º e no âmbito da acção administrativa especial se estabelece neste Código, o autor é considerado parte legítima quando alegue ser parte na relação material controvertida.».

X- Em termos de lei processual civil, aplicável ex vi do disposto no artigo 1.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, o qual preceitua:
«O processo nos tribunais administrativos rege-se pela presente lei, pelo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e, supletivamente, pelo disposto na lei de processo civil, com as necessárias adaptações».

XI- O preceito geral da questão da legitimidade contém-se no artigo 26.º do Código de Processo Civil. Aí se refere que o réu é parte legítima quando tenha interesse directo em contradizer – n.º 1; exprimindo-se esse interesse pelo prejuízo que, da procedência, advenha – n.º 2; e que, na falta de indicação em contrário, “são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor – n.º 3.

XII- O interesse directo de que deriva a legitimidade consiste em as partes serem os sujeitos da relação jurídica material submetida à apreciação do tribunal. “A legitimidade deve ser, pois, referida à relação jurídica objecto do pleito e determina-se averiguando quais são os fundamentos da acção e qual a posição das partes relativamente a esses fundamentos”.

XIII- Como refere Alberto dos Reis, “quando se trata de saber quem é a parte legítima para uma certa acção, não se pretende determinar apenas quem é que pode propor a acção e contra quem pode a acção ser proposta. (…) O alcance do problema é outro: pretende saber-se que requisitos devem possuir as partes para que o juiz se pronuncie sobre o fundo da causa ou sobre a relação controvertida.

XIV- Ter legitimidade é ter qualidade para obter uma sentença de mérito”.

XV- Assim, “a legitimidade processual da parte activa deve enquadrar-se com a da passiva segundo a finalidade pretendida por aquela: pagamento de quantia certa, entrega de coisa certa ou prestação de facto. Por isso, o demandante assegura a legitimidade das partes na acção se se identificar, ele próprio, como um dos titulares da relação material controvertida e apontar correctamente qual o sujeito passivo que deve responder pelo cumprimento da obrigação”.

XVI- A legitimidade processual surge em resultado, essencialmente, como a posição que as partes assumem perante o litígio, isto é, de posição “quanto à relação jurídica material, quanto ao conflito que o tribunal é chamado a resolver”.

XVII- Consistindo a titularidade da relação material controvertida “em ser demandante (legitimidade activa) o titular do direito e o demandado (legitimidade passiva) o sujeito da obrigação, suposto que o direito e a obrigação na verdade existem (…), mas uma certa posição delas em face da relação material litigada”.

XVIII- Ter legitimidade é, pois, “o poder de dirigir a pretensão deduzida em juízo ou a defesa contra ele oponível”.

XIX- Como decorre do já referido e como conclusão, a sociedade detém legitimidade para intentar a acção, visto que tem o poder de dirigir a pretensão deduzida em juízo.

XX- Logo, apenas nos encontramos face a uma questão que radica na irregularidade de concessão de poderes para a outorga do mandato forense, a qual é susceptível de ser sanada, desde que instada para o efeito pelo Tribunal.

XXI- Encontramo-nos face a uma irregularidade na concessão de mandato forense, a qual poderia ter sido suprida pela ratificação da mesma, ou pela outorga da procuração pelo único sócio da sociedade.
Assim,
XXII- Incorreu em erro de julgamento a Meritíssima Juíza do Tribunal a quo quando estribou a questão na ilegitimidade, decretando a absolvição do réu da instância.
De resto,

XXIII- A mesma situação ocorreu no processo 2648/07.3BELRB, o qual corre termos no TAF de Lisboa – 2.ª Unidade Orgânica, cuja procuração foi outorgada por quem de direito, no caso, pelo único sócio e gerente que foi da sociedade.

Em conclusão,

Face ao exposto, com o devido respeito, que é muito, e salvo melhor opinião em contrário, atento o princípio da colaboração e do pró actione, devia a Meritíssima Juíza a quo ter notificado a ora recorrente, para, em prazo legal, juntar procuração devidamente rectificada, uma vez que o impunha o acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efectiva.

Assim,
Nos melhores termos de direito e sempre com muito douto suprimento de Vossas Excelências, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, e, em consequência, ser revogada a douta sentença recorrida e proferida nova decisão de mérito, favorável à recorrente, que declare procedente a Acção Administrativa Especial.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Notificado nos termos do n.º 1 do artigo 146.º do CPTA, o MP informa não se pronunciar sobre o mérito do recurso, por entender que a relação jurídica material controvertida não implica direitos fundamentais dos cidadãos, interesses públicos especialmente relevantes, ou valores constitucionalmente protegidos como a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, o património cultural e os bens do Estado, das Regiões Autónomas e das Autarquias Locais (artigos 9.º, n.º 2 e 146.º, n.º 1 do CPTA).
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II – Mostram-se provados os seguintes factos:
A) A sociedade “A…”, foi matriculada na Conservatória do Registo Comercial sob o n.º …/….
B) Foi levado a registo, Ap. 17/041214, a dissolução e liquidação da sociedade.
C) A matrícula da sociedade foi cancelada em 14/12/2004 – Ap. 17/041214.
D) A p.i. foi apresentada em 31/05/2007.
E) À data da cessação da sociedade esta tinha por sócio C….
F) Foi levado a registo, em 22/09/2004, a nomeação de B… como gerente da sociedade.
G) A p.i. foi assinada pelo advogado A…..
H) Ao advogado foi passada procuração forense datada de 02/05/2007 pela sociedade “A…”, assinada por B…, na qualidade de gerente da sociedade.

III – Vem o presente recurso interposto da decisão da Mma. Juíza do TT de Lisboa que, julgando verificada a ilegitimidade da autora, absolveu, em consequência, a ré da instância.
Considerou, para tanto, a Mma. Juíza “ a quo” que a presente acção havia sido intentada por parte ilegítima porquanto a procuração forense outorgada ao mandatário que subscreve a petição inicial apresentada fora assinada por quem não tinha poderes para representar a sociedade em causa.
Ora, como bem alega a recorrente, e contrariamente ao decidido, não estamos perante uma questão de ilegitimidade mas sim de irregularidade do mandato.
Com efeito, a presente acção administrativa especial é intentada por sociedade que reage a decisão de indeferimento expresso de recurso hierárquico por si interposto.
Sendo que, nos termos do artigo 9.º do CPTA, o autor é considerado parte legítima quando alegue ser parte na relação material controvertida.
Do mesmo modo, de acordo com o artigo 26.º do CPC, o autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar, sendo considerado titular do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.
É certo que sobre o interessado recai o ónus de alegar os factos que integram a sua legitimidade mas no caso de impugnação de actos de liquidação os mesmos limitam-se à sua identificação no acto como sujeito passivo do tributo liquidado.
Daí que, no caso em apreço, a sociedade autora tenha inequivocamente legitimidade para intentar a presente acção.
Sucede é que a procuração outorgada em seu nome para que o mandatário que subscreve a petição apresentada possa por si litigar é assinada, de acordo com os factos que já constam dos autos, por quem já não detinha, então, poderes de representação da sociedade em causa.
E, assim sendo, estamos perante uma irregularidade na concessão de mandato forense, a qual pode, em qualquer altura, ser oficiosamente conhecida pelo tribunal, nos termos do artigo 40.º do CPC, competindo ao juiz fixar o prazo dentro do qual deve ser suprida a falta ou corrigido o vício e ratificado o processado.
Findo este prazo sem que esteja regularizada a situação, fica sem efeito tudo o que tiver sido praticado pelo mandatário, devendo este ser condenado nas custas respectivas e, se tiver agido culposamente, na indemnização dos prejuízos a que tenha dado causa (n. 2 do mesmo artigo 40.º do CPC).
A decisão recorrida que assim não entendeu não pode, por isso, manter-se na ordem jurídica.

IV – Termos em que, face ao exposto, acordam os Juízes da Secção de Contencioso Tributário do STA em conceder provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida, que deve ser substituída por outra que, em prazo a fixar, ordene a correcção do vício detectado na procuração apresentada e ratifique o processado, sob pena de, não regularizada a situação, ficar sem efeito tudo o que tiver sido praticado pelo mandatário (artigo 40.º do CPC).


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