sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Acórdão STA - Proc. 1054/08 - Legitimidade

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo: 01054/08
Data do Acordão: 29-10-2009
Tribunal: 1 SUBSECÇÃO DO CA
Descritores: ACÇÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL
LEGITIMIDADE ACTIVA
INTERESSE DIRECTO
INTERESSE PESSOAL
CONCORRÊNCIA
LICENÇA DE ESTABELECIMENTO COMERCIAL E INDUSTRIAL
Jurisprudência Nacional: AC STAPLENO PROC40961 DE 2002/02/21.; AC STA PROC48200 DE 2002/04/09.; AC STA PROC1576/03 DE 2004/11/10.
Referência a Doutrina: MANUEL DE ANDRADE NOÇÕES ELEMENTARES DE PROCESSO CIVIL PAG83-84; MARCELLO CAETANO MANUAL DE DIREITO ADMINISTRATIVO 10ED PAG1356-1361; AROSO DE ALMEIDA E OUTRO CÓDIGO DE PROCESSO ADMINISTRATIVO ANOTADO PAG55;VIEIRA DE ANDRADE A JUSTIÇA ADMINISTRATIVA LIÇÕES 3ED PAG93; FREITAS DO AMARAL DIREITO ADMINISTRATIVO VIV PAG37-38 PAG57-58 PAG61 PAG170-171; FERNANDES CADILHA DICIONÁRIO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO PAG297.


SUMÁRIO

I - O princípio geral relativo à legitimidade encontra-se no art.º 9.º/1 do CPTA onde se lê que “sem prejuízo do disposto no número seguinte e do que no art.º 40.º e no âmbito da acção administrativa especial se estabelece neste código, o autor é considerado parte legítima quando alegue ser parte na relação material controvertida”. Deste modo, por princípio, só se poderá apresentar a litigar em juízo quem alegue ser titular da relação jurídica administrativa donde emerge o conflito.

II - Todavia, esse princípio sofre adaptação quando está em causa a propositura de uma acção administrativa especial já que, neste caso, a legitimidade activa não depende da titularidade da referida relação visto a lei se limitar a exigir que o autor alegue “ser titular de um interesse directo e pessoal, designadamente por ter sido lesado pelo acto nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos” (art.º 55.º/1/a) do CPTA). O que alarga a possibilidade daquele que não é titular da relação material controvertida poder propor uma acção deste tipo, para tanto bastando alegar que é titular de um interesse directo e pessoal e de que este foi lesado, ainda que reflexamente, por aquela relação.

III - A indispensável e efectiva ligação entre o autor e o interesse cuja protecção reclama só garante a sua legitimidade quando, por um lado, ocorre uma situação de efectiva de lesão que se repercute na sua esfera jurídica, causando-lhe directa e imediatamente prejuízos, e, por outro, quando daí decorre uma real necessidade de tutela judicial que justifique a utilização do meio impugnatório, isto é, quando o interesse para que reclama protecção é directo e pessoal.

IV - Não tem interesse pessoal e directo e, por isso, carece de legitimidade activa aquele que pretende a anulação do licenciamento de uma grande superfície comercial com o fundamento de que a sua entrada em funcionamento abalaria seriamente a actividade do seu estabelecimento comercial tornando-o economicamente inviável e que tal conduziria ao seu encerramento e ao consequente despedimento dos seus trabalhadores.

TEXTO INTEGRAL

O Município de Esposende interpôs a presente revista do Acórdão do TCA Norte, de 24/07/08, que, concedendo provimento ao recurso jurisdicional da decisão do TAF de Braga, de 20/07/07, declarou a Autora, A… L.da, “parte legítima para a presente acção especial impugnatória” e ordenou “a baixa do processo ao TAF de Braga para aí prosseguir a sua ulterior tramitação, caso nada mais obste a tal”, a qual foi admitida por ter sido entendido que a matéria aqui controvertida tinha a relevância jurídica suficiente para justificar a intervenção deste Supremo Tribunal.

Nele se formularam as seguintes conclusões:

1. O douto acórdão recorrido violou, por erro de interpretação e aplicação, a al. a), do n.º 1, do art.º 55.º, do CPTA;

2. Na verdade, o "interesse pessoal e directo" constante desse preceito, correspondendo aos termos consagrados nos art.ºs 805.º e 821.º, n.º 1, do CA, 46.º do Regulamento do STA e 69.º, n.º 1, da LPTA (deixando de se fazer referência ao "legítimo”, por desnecessário) significa que o mesmo deve ser actual e não meramente hipotético ou eventual, que se produza concretamente na esfera jurídica ou actividade do recorrente;

3. Tal "interesse" deve, pois, traduzir-se numa utilidade ou vantagem para o recorrente, devendo ser actual como, aliás, resulta da 2ª parte "por ter sido lesado" (e não que venha a ser lesado) nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos;

4. Não o entendeu, assim, o douto acórdão recorrido ao interpretar tal conceito, no sentido de abarcar um interesse meramente eventual e futuro, desde que seja seguro, ou muito provável, que decorram prejuízos para a Autora do acto de licenciamento de construção de um Centro Comercial;

5. A entender-se desta forma, a construção de qualquer estabelecimento comercial poderia ser questionado por qualquer outro estabelecimento já instalado, uma vez que é sempre possível, que se traduza em prejuízo para este no exercício da sua actividade (retirando-lhe clientela), o que viola o princípio do mercado e da livre concorrência, como estruturante do direito comunitário;

6. Por outro lado a Autora não alegou - e muito menos provou - quaisquer prejuízos, mesmo eventuais e futuros, decorrentes da prática do acto de licenciamento em causa e que fossem susceptíveis de lesar os seus direitos (quais direitos?!. .. ) e interesses legalmente protegidos (que protecção?!. ..);

7. Limitando-se a alegar que é uma dona de um "talho ou açougue";

8. Assim, em face da matéria de facto provada, esta não integra qualquer "interesse directo e pessoal" da autora, como pressuposto de legitimidade (activa) da impugnação do referido acto de licenciamento;

9. Aliás, na providência cautelar apensa a este processo principal - em que a matéria de facto provada é a mesma - o Tribunal recorrido (TCA Norte) confirmou a sentença do TAF Braga, que julgou procedente a excepção dilatória de ilegitimidade da Autora (aí recorrente) - doc. junto - considerando que a mesma não demonstrou ter interesse directo actual e legítimo.

A Autora contra alegou para concluir do modo que se segue:

1. A determinação da legitimidade processual não provoca qualquer alteração de nenhuma natureza na questão de fundo ou substantiva; apenas assegura a alguém a possibilidade processual de a discutir, sem modificar a natureza ou influenciar a extensão ou a consistência jurídica, prática ou económica do direito a apreciar e a declarar (ou a sacrificar);

2. Os pressupostos de admissão do recurso de revista não se confundem com os seus fundamentos, intimamente ligados aos poderes de cognição do tribunal de revista, razão pela qual a mera afirmação da existência de uma alegada violação de um comando legal não conduz a que o recurso de revista seja, por si só, claramente necessário para uma melhor aplicação do direito.

3. Pelo que a admissão e apreciação do presente recurso não é, de forma alguma, necessária para uma melhor aplicação do direito.

4. Proferida a decisão meramente processual que julga legítimas as partes, os interesses subjacentes à relação material controvertida mantêm-se no exacto ponto onde se encontravam antes da decisão proferida;

5. No presente recurso, o recorrente Município não invocou fundamentos suficientes de que se verificam os requisitos extraordinários de admissibilidade do recurso de revista previstos no artigo 150.º, n.º 1 do CPTA;

6. A decisão processual que declara o impugnante parte legítima, não provoca quaisquer consequências ou reflexos no âmbito do princípio comunitário da livre concorrência, pelo que tal questão decidida não se reveste nem da relevância jurídica e social que o recorrido lhe atribui, nem da relevância jurídica e social prevista no referido preceito legal, pelo que o presente recurso é inadmissível;

7. Lido o recurso, há que concluir que em nenhum momento a decisão recorrida é dele concreto objecto, limitando-se a procurar repristinar a decisão revogada pelo acórdão recorrido;

8. O recurso não aprecia nem censura as questões decididas no acórdão recorrido, quer quanto à distinção entre legitimidade processual (por aproximação ao conceito de interesse em agir) e titularidade da relação jurídica material controvertida, quer quanto à distinção entre interesse directo e pessoal, usado para efeitos de legitimidade activa impugnatória e capacidade lesiva actual e imediata do acto impugnado, quer quando às conclusões decisórias que com base em tais distinções foram proferidas;

9. Do mesmo modo não se pronunciou quanto à conclusão decisória de acordo com a qual se encontra provada a existência de prejuízos por isso ser facto notório, prova essa que o acórdão recorrido fundou na norma do artigo 5140 do CPC, aplicável ex vi do artigo 1.º do CPTA;

10. Os recursos destinam-se a apreciar as questões resolvidas pela decisão recorrida e não a resolver as questões colocadas pelo recorrido na primeira instância ou questões decididas na decisão revogada pela decisão recorrida;

11. A decisão recorrida não merece censura - e nenhuma lhe foi feita, como se disse - pelo que deve ser confirmada, improcedendo o recurso.

Colhidos os vistos legais cumpre decidir.

FUNDAMENTAÇÃO

I. MATÉRIA DE FACTO.

A decisão recorrida julgou provados os seguintes factos:

1. A autora é uma empresa, estando registada sobre a forma de sociedade comercial por quotas, constando, como objecto social, do respectivo registo o exercício do comércio de carnes verdes - talho ou açougue [ver documento de folhas 24 a 28 dos autos que aqui se dá, para todos os efeitos legais, como integralmente reproduzido];

2. Em 16.05.2002 a sociedade B…, SA, apresentou um projecto junto da Câmara Municipal de Esposende, para a edificação de um Centro Comercial, localizado no sítio das …ou …, freguesia de Gandra, concelho de Esposende [ver documento de folhas 18 a 40 do PA que aqui se dá, para todos os efeitos legais, como integralmente reproduzido];

3. Em acta da sessão extraordinária da Assembleia Municipal de Esposende, realizada em 23.07.2003, sob o ponto único relativo ao reconhecimento do interesse público do equipamento comercial a ser construído na zona industrial de Esposende, relativamente à obra referida no número anterior, extrai-se, a final, que 'A Assembleia Municipal deliberou, por maioria absoluta dos presentes, corrido escrutínio secreto, com dezassete votos a favor, quinze votos contra e uma abstenção, aprovar a proposta da Câmara Municipal e reconhecer o interesse público do equipamento comercial a ser construído na zona industrial de Esposende [Gandra, Marinhas e Palmeira de Faro]" [ver documento de folhas 135 a 138 do PA que aqui se dá, para todos os efeitos legais, como integralmente reproduzido];

4. Em despacho datado de 14.04.2005, do Vereador da Câmara Municipal de Esposende, no exercício de competências delegadas pelo respectivo Presidente da Câmara, relativamente à obra supra referida, extrai-se que "1. Deferidos, o projecto de arranjos exteriores devendo o requerente durante a execução da obra, dar cumprimento ao ponto 5 da informação DGP/1656112005 e desenho anexo. 2. Deferidos 5 projectos das especialidades e os projectos de obras de urbanização nos termos das informações DPD/15511/2005, 64/DASU/2005, DIM/16564/2005 e DGU/16562/2005. 3. Deverá o requerente apresentar garantia bancária para garantir a boa e regular execução das obras de urbanização, no valor de 1.000.000,00 €. 4. Informar o requerente de que deverá solicitar a emissão do alvará de licença de construção, no prazo máximo de um ano" [ver documento de folha 589 do PA que aqui se dá, para todos os efeitos legais, como integralmente reproduzido];

5. Em 28.04.2005 foi emitido a favor da B…, SA um alvará de licença de construção com n.º 34/2005 relativo à obra referida nos números anteriores, para a construção de um centro comercial [ver documento de folha 748 do PA que aqui se dá, para todos os efeitos legais, como integralmente reproduzido];

6. Em 17.05.2005 foi celebrada uma escritura de compra e venda do terreno onde se localiza a obra a erigir supra referida, tendo a empresa B…, SA, figurado no citado documento como vendedora e a C…, SA, como compradora [ver documento de folhas 365 a 369 dos autos que aqui se dá, para todos os efeitos legais, como integralmente reproduzido];

7. Em 14.06.2005 o processo de licenciamento referido nos números anteriores foi averbado em nome da C…, Lda. [ver documento de folhas 768 a 770 do PA que aqui se dá, para todos os efeitos legais, como integralmente reproduzido];

8. Em exposição escrita que deu entrada nos serviços do réu Município de Esposende em 19.09.2005, a requerente solicitou àquela que: "Seja emitida certidão de todos os actos de licenciamento e suas informações conexas ou de fundamentação, exarados no processo camarário n.º 275/2002, de licenciamento para construção de edifícios destinados a armazéns, indústria, comércio e serviços a instalar no Parque Industrial de Gandra, com a menção de existência de outros; Seja emitida certidão de todos os documentos constantes de eventuais pedidos de informação prévia requeridos pela sociedade requerente no processo n.º 275/2002, ou que abranjam o prédio objecto do citado processo, com a menção da inexistência de outros; Seja emitida certidão de todos os pareceres de entidades exteriores eventualmente emitidos no âmbito do processo em n.º 275/2002, com menção da inexistência de outros" [ver documento de folhas 144 a 145 dos autos que aqui se dá, para todos os efeitos legais, como integralmente reproduzido];

9. Em 04.10.2005 foram emitidas as certidões pedidas pela autora nos termos do número anterior [ver documento de folhas 146 dos autos que aqui se dá, para todos os efeitos legais, como integralmente reproduzido];

10. Em 28.11.2005, foi realizada a vistoria à obra edificada do centro comercial referido nos números anteriores [ver documento de folhas 1021 do PA que aqui se dá, para todos os efeitos legais, como integralmente reproduzido];

11. Em 29.11.2005, foi emitido um alvará de licença de utilização para estabelecimento de comércio e produtos alimentares relativamente à obra referida nos números anteriores, figurando como titular da licença a C…, Lda., e a entidade exploradora o D… [ver documento de folha 1029 do PA que aqui se dá, para todos os efeitos legais, como integralmente reproduzido].

II. O DIREITO

A Câmara Municipal de Esposende, por deliberação de 23/07/2003, reconheceu o interesse público na instalação de um Centro Comercial nesse concelho o que conduziu a que o seu Vereador, por despacho de 14/04/2004, tivesse aprovado os projectos indispensáveis à sua realização e que, concluída a mesma, tivesse sido emitido a respectiva licença de utilização. São aqueles actos de 23/07/2003 e de 14/04/2004 que a sociedade A… L.da, quer ver anulados para o que propôs esta acção administrativa especial no TAF de Braga.

Aquele Tribunal declarou a Autora parte ilegítima, por entender que ela não tinha “qualquer interesse actual e imediato na impugnação do acto em causa, pois os prejuízos invocados são de carácter meramente eventual e mediato”, decisão que o Tribunal Central Administrativo Norte revogou.

Para decidir desse modo TCA entendeu que a Autora, independentemente de ser ou não titular da relação jurídica controvertida, tinha um interesse directo e pessoal em agir visto não ser “a circunstância de o licenciamento da construção do centro comercial (…) ainda não estar a prejudicar a actividade comercial da recorrente, ou seja, não é a circunstância desses prejuízos ainda não serem actuais, que deverá impedir que ela impugne esse licenciamento, retirando-lhe a necessária legitimidade para o efeito. Questão é que lhe assista interesse directo e pessoal nessa impugnação e que, pelo menos, seja seguro ou muito provável que esses prejuízos ocorrerão. E quanto a isso não restam dúvidas; mostra a experiência que esses prejuízos ocorrerão (facto notório – art.º 514/1 do CPC); mostra a lógica das coisas que esses danos agredirão directamente a esfera jurídica da titular dessa actividade comercial, a sociedade recorrente, a quem assiste, pois, um interesse directo e pessoal na impugnação contenciosa que os pode evitar.”

Daí que tenha concluído que a Autora era “parte legítima para a presente acção especial impugnatória”, e tenha ordenado “a baixa do processo ao TAF de Braga para aí prosseguir a sua ulterior tramitação, caso nada mais obste a tal.”.

O Município de Esposende interpôs recurso dessa decisão sustentando que só se poderia afirmar que a Autora tinha legitimidade para propor a presente acção se o interesse que ela pretende fazer valer em juízo fosse actual e não meramente hipotético ou eventual e, por isso, que os actos cuja anulação pede lhe causavam imediatos prejuízos. Ora, não tendo alegado quaisquer prejuízos, mesmo eventuais e futuros, decorrentes da prática dos actos impugnados susceptíveis de lesar os seus direitos e interesses legalmente protegidos, era evidente que a Autora carecia de legitimidade e que, por isso, bem tinha andado o TAF de Braga quando, com esse fundamento, o absolveu da instância.

Recurso que foi admitido por ter sido considerado que "a questão a dirimir no âmbito da presente revista se apresenta como de especial relevância jurídica, por passar, designadamente pela densificação do conceito de “interesse directo e pessoal”, a que alude alínea a) do n.º 1 do art.º 55.º do CPTA, para efeitos de “legitimidade activa impugnatória” e, portanto, com um alcance que extravasa significativamente do caso concreto e poderá servir de referência interpretativa da norma em causa noutras eventuais situações, tratando-se, por outro lado, de questão que se reveste de alguma complexidade, e que motivou, aliás, uma leitura divergente, por parte do TCA Norte, em sede do procedimento cautelar de suspensão de eficácia deduzido pela aqui Recorrida com referência ao já mencionado despacho do Vereador da CM de Esposende, de 14/04/04, e em que o TCA manteve a decisão da 1ª instância, no sentido de ilegitimidade activa da dita Recorrida, por se tratar, fundamentalmente, de interesses “meramente eventuais e hipotéticos e que não resultam do acto administrativo em si mesmo considerado (…)” – cfr. fls. 443 – o que tudo bem evidencia a particular relevância jurídica da questão levantada nesta revista.”

A questão que se nos coloca é, pois, como se vê, a de saber se a Autora (ora Recorrida) tem legitimidade para impugnar a (1) deliberação da CM de Esposende que reconheceu interesse público na construção do Centro Comercial aqui em causa e (2) o acto que o licenciou.

1. A legitimidade é, como se sabe, um pressuposto processual, isto é, uma condição cuja verificação é indispensável à obtenção da pronúncia do Tribunal sobre o mérito da causa.
O princípio geral relativo à sua aplicação na esfera administrativa encontra-se no art.º 9.º/1 do CPTA onde se lê que “sem prejuízo do disposto no número seguinte e do que no art.º 40.º e no âmbito da acção administrativa especial se estabelece neste código, o autor é considerado parte legítima quando alegue ser parte na relação material controvertida”. O que, quer dizer que, por princípio, só se poderá apresentar a litigar em juízo quem alegue ser titular da relação jurídica administrativa donde emerge o conflito.

Todavia, esse princípio sofre adaptação quando está em causa a propositura de uma acção administrativa especial já que, neste caso, a lei não elege a titularidade da referida relação como critério de aferição da legitimidade activa visto se limitar a exigir que o autor alegue “ser titular de um interesse directo e pessoal, designadamente por ter sido lesado pelo acto nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos” (art.º 55.º/1/a) do CPTA). O que alarga a possibilidade daquele que não é titular da relação material controvertida poder propor uma acção deste tipo, para tanto lhe bastando alegar que é titular de um interesse directo e pessoal e de que este foi lesado, ainda que reflexamente, pelo acto que quer ver anulado. Sendo que o critério para se ajuizar da necessidade de tutela judicial é, precisamente, a utilidade ou vantagem que ele possa retirar da anulação contenciosa, atenta a sua intrínseca conexão com os efeitos imediatos do acto impugnado Aroso de Almeida e Fernandes Cadilha, in CPTA Anotado, pg. 55. Vd. também Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, 3ª ed., pág. 93 e Acórdão do Pleno deste STA de 21/02/02, rec. 40.961..

O que nos permite, desde já, retirar duas importantes conclusões para a solução do presente caso: a primeira, a de que se pode recorrer a juízo sem se ser titular da relação jurídica administrativa donde emerge a lesão e, a segunda, a de que não basta a invocação de um qualquer direito ou interesse para, automaticamente, se ter legitimidade activa visto ser necessário que esse interesse seja directo e pessoal e, além disso, seja legítimo, isto é, tenha a cobertura do direito.

E, porque assim, e porque a titularidade de um interesse directo e pessoal é fundamental para definir o conceito de legitimidade cumpre definir o que se deve entender por interesse directo e pessoal.

1. 1 E nesse labor importa adoptar critérios abrangentes não só porque o art. 268.º/4 da CRP garante a todos os interessados “a tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos”, mas também porque este Tribunal tem entendido que, ao nível dos pressupostos processuais e em homenagem aos princípios antiformalista e pro actione, a lei deve ser interpretada de modo a que se privilegie o acesso ao direito e a uma tutela judicial efectiva Vejam-se a propósito os Acórdãos de 2/6/99 (rec. 44.498), de 7/12/99 (rec. 45.014), de 15/12/99 (rec. 37.886), de 16/8/00 (rec. 46.518) e de 9/4/02 (rec. 48.200).. E, por isso, é de rejeitar uma interpretação restritiva do que se deve entender interesse directo e pessoal, já que isso poderia limitar o acesso à referida tutela, o que não significa que a mera invocação da violação de um direito ou interesse legalmente protegido baste para o autor ver reconhecida a sua legitimidade já que, não sendo a ilegalidade do acto critério para se aferir da legitimidade do autor, este só poderá ser declarado parte legítima quando alegue que o acto violador, para além de ilegal, é lesivo dos seus direitos e interesses legalmente protegidos e que retira vantagens imediatas da sua anulação. Ou seja, e regressando ao texto legal, importa que o autor invoque a titularidade de um interesse directo e pessoal e não meramente longínquo, eventual ou hipotético Este já era o regime que se colhia no Cod. Administrativo e no RSTA (Vd. seus art.ºs 821.º/2 e 46.º/1, respectivamente). A única diferença que se pode apontar é a de que nestes se referia, expressamente, que o interesse para além de ter de ser directo e pessoal tinha de ser legítimo, o que agora não acontece, mas essa diferença é irrelevante já que não fará sentido conceder legitimidade a alguém que se apresente em juízo a peticionar o reconhecimento de um interesse sem cobertura legal e, portanto, ilegítimo..

Por fim – e para complemento do que se acaba de dizer - importa referir que a verificação da legitimidade deve ser reportada ao momento da propositura da acção visto que, enquanto pressuposto processual, ela tem de estar presente “quando a instância tem início, e não antes, em que a anulação contenciosa não passa de mera possibilidade que o administrado poderá ou não a vir a utilizar. Na medida em que a legitimidade relaciona o interesse da parte e o desfecho do processo, só a existência real e conjectural desse processo é susceptível de convocar a necessidade do preenchimento do requisito.” – Acórdão deste STA de 10/11/2004 (rec. 1576/03)

1. 2. Encontrando-nos no âmbito de uma acção impugnatória em que o interesse alegadamente atingido é de natureza individual, vejamos se os factos invocados pela Autora como justificativos da sua legitimidade podem ser reveladores da titularidade de um interesse directo e pessoal, questão nem sempre fácil de dilucidar pelas dúvidas e incertezas que, por vezes, suscita.

Com efeito, e muito embora seja pacífico que o interesse é directo “quando o benefício resultante da anulação do acto recorrido tiver repercussão imediata no interessado” e que é pessoal “quando a repercussão da anulação do acto recorrido se projectar na própria esfera jurídica do interessado” Prof. F Amaral, in Direito Administrativo, vol. IV, pg.s 170 e 171. e que, por isso, o carácter pessoal do interesse está relacionado com a utilidade ou vantagem que o autor retira da anulação do acto e que esse benefício tem de ser directo, isto é, tem de ter repercussão imediata na sua esfera jurídica, as dificuldades surgem quando se trata de aplicar tais conceitos ao caso concreto. E isto porque, como nota M. Aroso de Almeida, “o pressuposto da legitimidade não se confunde com o do interesse processual ou interesse em agir. Com efeito, pode não haver qualquer dúvida quanto à questão de saber se quem está em juízo é parte na relação material controvertida, tal como o Autor a configurou ..... e no entanto poder questionar-se a existência de uma necessidade efectiva de tutela judiciária e, portanto, de factos objectivos que tornem necessário o recurso à via judicial.” . Vd. ainda as considerações feitas na mesma Obra a fls. 37 e 38 e 57 a 61 e, entre outros, Acórdão do Pleno de 21/02/02, rec. 40.961. E, porque assim é, salienta o mesmo Autor, o interesse processual, sempre teve grande relevância no contencioso administrativo, maxime na impugnação dos actos administrativos, “designadamente para se aferir da actualidade dos interesses dos recorrentes particulares, em termos de saber se os recursos contenciosos eram interpostos contra actos administrativos eficazes, que infligissem lesões efectivas, que não apenas potenciais ou hipotéticas (interesse directo) e uma vez esgotadas as eventuais vias de impugnação administrativa necessária”. - Aroso de Almeida, “O Novo Regime do Processo Nos Tribunais Administrativos”, 2.ª ed., pg. 57, com sublinhado nosso Vd. Obra citada, a fls. 58. Vd. também F. Cadilha Dicionário de Contencioso Administrativo, pg. 297..

Podemos, pois, concluir que a indispensável e efectiva ligação entre o autor e o interesse cuja protecção reclama só garante a sua legitimidade quando, por um lado, ocorre uma situação de efectiva lesão que se repercute na sua esfera jurídica, causando-lhe directa e imediatamente prejuízos, e, por outro, quando daí decorre uma real necessidade de tutela judicial que justifique a utilização do meio impugnatório. Parte legítima é, assim, todo aquele que retire da anulação do acto impugnado um benefício concreto - patrimonial ou moral - não contrário à lei, que directa e imediatamente se reflecte na sua esfera jurídica pessoal. E, a contrario, que não gozam de legitimidade aqueles cujo interesse não é directo e imediato e, por isso, que a tutela requerida se traduz num benefício actual mas meramente hipotético e longínquo A este propósito podem ver-se M. de Andrade “Noções Elementares de processo Civil”, pg. 83 e 84., M. Caetano Manual de Direito Administrativo 10.ª ed., pg 1356 a 1361 e, entre muitos outros, os Acórdãos deste STA de 24/10/96, (rec. 40.500) de 22/6/99 (rec. 44.568), de 24/2/00 (rec. 40.961), de 18/5/00 (rec. 45894), de 11/1/01 (rec. 46.770), de 16/3/01 (rec. 40.961), de 25/9/01 (rec. 46.301), de 26/11/03 (rec. 46/02), de 3/03/04 (rec. 1.240/03) , de 16/06/2004 (rec. 953/03) e de 10/11/2004 (rec. 1576/03)..

Assente que a legitimidade é uma condição de interposição de uma acção que deve ser aferida em função da titularidade dos interesses directos e pessoais emergentes da relação jurídica administrativa, tal como ela é configurada pelo autor, importa analisar se os interesses invocados pela Autora, ora Recorrida, foram, de facto, directa e pessoalmente lesados pelos actos impugnados, pois que só se tal acontecer é que se poderá dizer que ela é parte legítima nesta acção.

2. A Autora propôs a presente acção imputando aos actos impugnados - a deliberação da CM de Esposende que reconheceu interesse público na construção de um Centro Comercial naquele concelho e o despacho do Vereador daquela Câmara que o licenciou – os seguintes vícios: erro nos seus pressupostos de facto e de direito, desrespeito pelo Estatuto dos Eleitos Locais, desvio de poder e violação dos instrumentos de gestão territorial aplicáveis.

Os RR questionaram a legitimidade da Autora com o fundamento de que ela não havia invocado qualquer facto de onde pudesse perceber-se que tinha interesse pessoal e directo naquela impugnação, tendo ela respondido que a entrada em funcionamento daquele Centro abalaria seriamente a actividade dos estabelecimentos comerciais existentes na área, designadamente os de que era proprietária, tornando-os economicamente inviáveis, e que tal conduziria ao seu encerramento e ao consequente despedimento dos seus trabalhadores. Acrescentou, ainda, que o licenciamento impugnado significava a permissão de construção de um equipamento comercial numa zona industrial.

O que quer dizer que a Autora fundou a sua legitimidade nos reflexos que aquele acto licenciador tinha na sua esfera jurídica apelando para as incontornáveis dificuldades económicas que a concorrência acrescida, decorrente da entrada em funcionamento daquele Centro, lhe iria provocar e para a possibilidade delas porem em causa a sua sobrevivência económica. Ou seja, o bem jurídico que ela se apresentou a defender foi o interesse pessoal da sua própria sobrevivência, posta em causa pelo aparecimento de um novo concorrente de dimensão e poder económicos muito superiores aos seus.

Mas esse interesse não é suficientemente qualificado para lhe conferir legitimidade activa visto não ser directo e isto porque resultando os prejuízos alegados não do acto licenciador mas da concorrência acrescida que a instalação de uma nova superfície comercial irá trazer é forçoso concluir que não é aquele acto que irá causar os invocados prejuízos, ou seja, o interesse invocado pela Autora não é actual e imediato. Por outro lado, e ao contrário do que se sustenta no Acórdão recorrido, não se pode afirmar que os alegados prejuízos sejam certos visto nada garantir a sua inevitabilidade.

Aliás, os interesses prosseguidos pelas normas que a Recorrida crê violadas são alheios a questões de concorrência, logo é longínqua a relação entre o interesse invocado e a legalidade que ela pretende repor pelo que, também por este prisma, carece de interesse directo na anulação.

Finalmente, a actividade a que a Recorrida se dedica não está legalmente condicionada e, porque o não está, ela não pode questionar a liberdade de comércio e impedir a abertura de estabelecimentos que lhe façam concorrência.

Em suma: os interesses que a Autora pretende alcançar, muito embora possam vir a ser reflexamente atingidos pelos actos impugnados, não são directos por não se repercutirem de forma directa e imediata, e com efeitos lesivos, na sua esfera jurídica patrimonial. Tanto basta para se poder afirmar que a mesma não legitimidade para propor a presente acção.

Termos em que acordam os Juízes que compõem este Tribunal em conceder provimento à revista e, revogando-se o Acórdão recorrido, julgar improcedente a acção. Custas pela Recorrida.
Lisboa, 29 de Outubro de 2009. - Alberto Acácio de Sá Costa Reis (relator) - Jorge Artur Madeira dos Santos - Luís Pais Borges.

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