sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Acórdão STA - Proc. 1061/06 - Recurso hierárquico necessário

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo: 01061/06
Data do Acordão: 28-12-2006
Tribunal: 2 SUBSECÇÃO DO CA
Descritores: RECURSO HIERÁRQUICO NECESSÁRIO
ESTATUTO DISCIPLINAR.
INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL.
CÓDIGO DE PROCESSO NOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS
Jurisprudência Nacional: AC STAPLENO PROC41608 DE 1996/02/03.; AC STAPLENO; PROC32592 DE 1996/05/07.; AC STAPLENO PROC45085 DE 1999/11/09.; AC STAPLENO PROC30307 DE 2000/02/18.; AC STAPLENO PROC46058 DE 2001/06/29.; AC STAPLENO PROC46058 DE 2002/04/18.; AC TC 86/84.; AC TC 39/88 IN ACTC V11 PAG233 E BMJ N347 PAG1147.; AC TC 9/95.; AC TC 603/95.; AC TC 24/96.; AC TC 499/96.; AC TC 40/2001.; AC TC 283/2001.; AC TC 253/2003.; AC STAPLENO PROC1865/02 DE 2003/02/06.; AC STA PROC350/03 DE 2003/04/09.; AC STA PROC1005/03 DE 2003/10/02.
Referência a Doutrina: VIEIRA DE ANDRADE EM DEFESA DO RECURSO HIERÁRQUICO IN CJA N0 PAG13; MÁRIO AROSO DE ALMEIDA AS IMPLICAÇÕES DE DIREITO SUBSTANTIVO DA REFORMA DO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO IN CJA N34 PAG71; VASCO PEREIRA DA SILVA EM BUSCA DO ACTO ADMINISTRATIVO PERDIDO PAG667 PAG674; PAULO OTERO AS GARANTIAS IMPUGNATÓRIAS DOS PARTICULARES NO CPA IN SCIENTIA IURIDCA VXII N235/237 PAG258; VASCO PEREIRA DA SILVA DE NECESSÁRIO A ÚTIL: A METAMORFOSE DO RECURSO HIERÁRQUICO NO NOVO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO IN CJA N47 PAG21 PAG23 PAG25; MÁRIO AROSO DE ALMEIDA O NOVO REGIME DO PROCESSO NOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS 2ED PAG139; VIEIRA DE ANDRADE A JUSTIÇA ADMINISTRATIVA (LIÇÕES) PAG269.

SUMÁRIO

I - O nº8 do artº78º do ED, ao impor a interposição de um recurso hierárquico necessário não padece de inconstitucionalidade material superveniente face ao nº4 do artº268º da CRP/97, nem se encontra revogado pelo CPTA, ou por qualquer outro diploma, pelo que se mantém em vigor.

II - Tendo sido julgado intempestivo o recurso hierárquico interposto pela ora recorrente ao abrigo do citado preceito legal, e não tendo a recorrente impugnado essa decisão, falta um pressuposto processual necessário para abertura da via contenciosa, o que obsta ao conhecimento do mérito da causa.

TEXTO INTEGRAL

Acordam, em conferência, os juízes da Secção Administrativa do Supremo Tribunal Administrativo:

I- RELATÓRIO

A…, com os sinais dos autos, veio interpor recurso para o STA do acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul proferido em 13.09.2006, que revogou a sentença do TAF de Leiria e indeferiu a presente providência cautelar de suspensão de eficácia do despacho do Director Regional de Educação de Lisboa, de 06.02.2005, que aplicou à recorrente a pena disciplinar de inactividade, graduada em um ano.

A recorrente termina as suas alegações, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
A) A requerente intentou e foi decretada providência cautelar de suspensão de eficácia de acto administrativo do despacho do Senhor Director Regional de Educação de Lisboa que aplicou a pena disciplinar de inactividade de um ano, nos termos dos artº112º e segs.

b) Alegando,
b.1- Que o referido acto padece de ilegalidade, por falta de audiência da arguida e omissão de diligências essenciais para a descoberta da verdade e por ofensa do conteúdo essencial do direito de defesa, devendo ser declarado nulo, de acordo com os artº42º, 55º, 61º e 64º do DL 24/84, de 16.01, dos artº87º e 91º do CPA e artº42º do DL 24/84 e 133º, nº2d) do CPA.

b.2.- A prescrição dos processos disciplinares, considerando o disposto no artº4º e 88º do DL 24/84.

b.3- Que a decisão é um acto ineficaz, por violação do disposto no artº 68º, nº1 do CPA e 268º, nº3 da CRP.

b.4- Que a imediata execução do acto priva de meios de subsistência o agregado familiar da requerente, composto por três filhas estudantes, duas no ensino superior em Lisboa, pelo que a privação daquele rendimento constitui um prejuízo irreparável ou de difícil reparação, provocando um abaixamento drástico do nível de vida, em especial das filhas da requerente.

b.5. A adopção da providência não é susceptível de causar qualquer lesão para o interesse público.

B) O requerido apresentou oposição invocando ser manifesta a falta de fundamento da pretensão a formular ou formulada no processo principal, por se verificar circunstâncias que obstam ao conhecimento do mérito, nos termos do artº120º, nº1 parte final da al. b), designadamente da necessidade de recurso hierárquico necessário do acto administrativo, para efeitos de impugnabilidade contenciosa, nos termos do artº73º e 74º do Estatuto Disciplinar.

C) Foi proferida douta sentença a decretar a suspensão da eficácia do acto administrativo, por considerar verificados todos os requisitos e que a questão de inimpugnabilidade do acto não se trata de uma manifesta falta de pretensão, atendendo que o novo CPTA deixou de fazer referência no seu artº51º ao requisito de definitividade vertical e actualmente esta é uma questão controvertida, discutida na doutrina e jurisprudência.

D) Pelo que deverá ser aprofundada e decidida na acção principal, atentas as características da provisoriedade e da instrumentalidade das providências cautelares, que exigem que a apreciação sobre as probabilidades de êxito do processo principal seja sumária e provisória, pois que o seu objectivo não é substituir o processo principal, mas dar-lhe efeito útil.

E) Não se conformando o requerido interpõe recurso para o Tribunal Central Administrativo que decidiu revogar a sentença e assim indeferir a providência cautelar de suspensão de eficácia do acto administrativo, com fundamento na manifesta falta de pretensão formulada ou a formular no pedido principal e que obsta ao conhecimento do mérito, designadamente a necessidade de recurso hierárquico necessário, nos termos da parte final da al. b) do nº1 do artº120º do CPTA, 73º e 74º do Estatuto Disciplinar.

F) Ao mesmo tempo que, no douto acórdão reconhece a controvérsia desta questão e admite a tendência para o alargamento da possibilidade de impugnação directa e imediata dos actos administrativos, atendendo à fase evolutiva do Direito Administrativo e ao facto d se poder vir a admitir a inconstitucionalidade destas normas antigas avulsas que prevêem o recurso hierárquico necessário, por violação do disposto no artº266º, nº4 da CRP.

G) Face ao exposto, é patente a necessidade de recurso, pois que no entender da requerente e recorrente, o douto acórdão padece de uma contradição grave e esta é uma questão que merece tratamento judicial.

H) Pois, do acórdão resulta claro que é unânime que a questão da definitividade vertical como requisito da impugnabilidade dos actos administrativos não é pacífica e manifesta, pelo que não será aplicável o disposto na parte final da al. b) do artº120º, nº1 do CPTA.

I) Por outro lado, o douto acórdão, ao contrário do entendimento sufragado na sentença recorrida, decidiu tomar posição definida sobre esta polémica questão, entendendo a necessidade de recurso hierárquico necessário, sendo que esta deverá ser uma questão a ser abordada na acção principal, sob pena de se retirar o efeito útil desta providência cautelar.

J) Pelo que, em nosso entender, a douta sentença não carece de qualquer reparo, inexistindo manifesta falta de pretensão e encontrando-se verificados todos os pressupostos para a concessão da suspensão de eficácia do acto administrativo.

K) ---------------------------------------------------------------------------

L) À cautela e relativamente à definitividade vertical, como requisito necessário à impugnação contenciosa do acto administrativo, sempre se dirá que, o CPTA não exige que os actos administrativos sejam objecto de prévia impugnação administrativa para que possam ser objecto de impugnação contenciosa.

M) Das soluções consagradas nos artº51º e 59º, nº4 e 5 decorre, por isso, a regra de que a utilização de vias de impugnação administrativa não é necessária para ceder à via contenciosa.

N) Sendo que o CPTA não revoga as múltiplas determinações legais avulsas que instituem impugnações administrativas necessárias, através de disposição legal expressa.

O) Na ausência de determinação legal expressa e de acordo com o espírito do novo CPTA, os artº51º e 59º, nº4 e 5, deve entender-se que os actos administrativos com eficácia externa, são imediatamente impugnáveis perante tribunais administrativos.

P) Assim, é impugnável aquele acto administrativo cujos efeitos que ele se destina a introduzir na ordem jurídica sejam susceptíveis de se projectar na esfera jurídica de qualquer entidade, privada ou pública, em condições de fazer com que para elas possa resultar um efeito útil da remoção do acto da ordem jurídica.

Q) E esta foi a ideia traduzida no novo CPTA e que se pode observar da leitura da sua exposição de motivos.

R) Pelo que, é nosso entendimento que o acto administrativo que aplicou à requerente e recorrente a pena disciplinar de inactividade, trata-se de um acto impugnável directamente, com eficácia externa e que de acordo com os artº51º, nº1 do CPTA, sob pena de inconstitucionalidade, designadamente o disposto nos artº268º, nº4 da CRP.

S) E, de outra forma, não faria sentido as normas do artº59º, nº4 e 5 do CPTA, que reafirmam esta inovação do Direito Administrativo, necessário à boa defesa dos direitos e garantias em geral.

T) Pelo que, em nosso entender, o acto administrativo é impugnável, nos termos do artº51º, 59º, nº4 do CPTA e 268º, nº4 da CRP, inexistindo qualquer fundamento para não aplicar o regime legal em vigor, pois que o que existe são norma antigas avulsas, com base num regime jurídico material e processual diferente da actualidade e do Direito Administrativo!!

U) Pelo que, V. Exª.s deverão revogar o douto acórdão, mantendo-se a douta sentença em vigor que concedeu a providência cautelar de suspensão de eficácia do acto administrativo, nos termos do artº112º e segs. do CPTA.

V) Sempre na plena convicção de que V.Exª. farão a devida acostumada JUSTIÇA.

*
O recorrido Ministério da Educação, nas suas alegações, veio sustentar, que a questão de direito colocada a este STA pela recorrente, e que esteve na origem do indeferimento do pedido de suspensão de eficácia do despacho punitivo suspendendo, não assume uma importância fundamental que justifique a presente revista.
*
Por acórdão deste STA, proferido em 09.11.2006, o recurso foi admitido, por se verificarem os pressupostos que condicionam a admissão do recurso excepcional de revista previsto no artº150º do CPTA.

Foi cumprido o artº146º, nº1 do CPTA, não tendo o MP emitido qualquer pronúncia sobre o mérito do recurso.

Cumpre agora decidir.
*

II- OS FACTOS

A matéria de facto é a fixada na sentença proferida em 1ª instância, para que se remete (artº713º, nº6 do CPC).
*
III – O DIREITO

Nos termos do nº1 do artº150º do CPTA, «Das decisões proferidas em 2ª instância pelo Tribunal Central Administrativo pode haver, excepcionalmente, revista para o Supremo Tribunal Administrativo quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.»

O acórdão do STA que admitiu o presente recurso, considerou que se verificavam os pressupostos de admissão do presente recurso excepcional de revista e passamos a citar, « atendendo à importância jurídica de que se revestem as questões que a recorrente pretende submeter à apreciação deste STA.

Na verdade, tal como decorre dos autos, o Acórdão do TCA concedeu provimento ao recurso jurisdicional interposto da decisão do TAF (que tinha deferido a providência cautelar deduzida pela Recorrente), por ter entendido que se verifica manifesta falta de fundamento da pretensão formulada ou a formular no processo principal, na medida em que o acto cuja eficácia se pretendia ver suspensa estava sujeito a recurso hierárquico obrigatório, nos termos dos artº73º/75º do ED, normas que se manteriam em vigor, por não terem sido revogadas, expressa ou tacitamente, por qualquer diploma legal, designadamente o CPTA.

Sucede que a posição assumida no Acórdão recorrido, se reporta a questão que tem motivado, desde logo, divergência a nível da doutrina, bastando para o efeito atender, para além do mais, ao que defendem Mário Aroso de Almeida e Carlos A. Cadilha, in “ Comentários ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, a pgs. 262/264 e o que, a este propósito escreveu Vasco Pereira da Silva, in “ De necessário a útil: a metamorfose do recurso hierárquico”, a pág. 26/30, tendo sempre como pano de fundo o disposto no nº1 do artº51º e no nº5 do artº59º, todos do CPTA.

Por outro lado, trata-se aqui de questão cuja resolução envolve alguma complexidade, ao que acresce a circunstância de situações similares à dos autos poderem, muito provavelmente, surgir num número indeterminado de casos, sendo este um campo em que existência de uma evidente álea de incerteza é passível de afectar o regular uso das garantias contenciosas, impondo-se, por isso, a intervenção clarificadora do STA neste particular domínio.» Ficou, assim, definido o âmbito da presente revista, que incidirá sobre a questão jurídica identificada no referido acórdão do STA, como tendo relevância bastante para justificar, excepcionalmente, um terceiro grau de jurisdição e que é a de saber se as disposições dos artº73º/75º do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local (doravante ED), na parte em que exigem a interposição de recurso hierárquico necessário, como condição da impugnação contenciosa do acto que aplicou à recorrente pena disciplinar de inactividade por um ano, se mantêm em vigor após o CPTA.

Apreciemos então:

Os citados preceitos do ED têm a seguinte redacção, na parte relevante:

Artº73º
Da decisão proferida em processo disciplinar pode caber recurso hierárquico e recurso contencioso.
Artº74º
Das decisões condenatórias dos ministros e demais entidades competentes cabe recurso contencioso nos termos gerais.
Artº75
1. O arguido e o participante podem recorrer hierarquicamente dos despachos que não sejam de mero expediente proferidos por qualquer dos funcionários e agentes mencionados no artº16º.
2. (…)
3. O recurso hierárquico interpõe-se directamente para o membro do Governo competente, no prazo de 10 dias a contar da data em que o arguido e o participante tenham sido notificados do despacho ou no prazo de 20 dias a contar da publicação do aviso referido no nº2 do artº59º.
4.(…)
5. Se o arguido não tiver sido notificado, ou se a pena não tiver sido anunciada em aviso nos termos do nº3, o prazo conta-se a partir da data em que o arguido tiver conhecimento do despacho.
6. A interposição do recurso hierárquico suspende a execução da decisão condenatória e devolve ao membro do Governo a competência para decidir definitivamente, podendo este mandar proceder a novas diligências, manter, diminuir ou anular a pena.
7. A pena só pode ser agravada ou substituída por pena mais grave em resultado de recurso do participante.
8. Da aplicação de quaisquer penas que não sejam da exclusiva competência de um membro do Governo cabe recurso hierárquico necessário.

Resulta dos factos provados que à ora recorrente, professora vinculada do ensino básico, foi aplicada uma pena disciplinar de inactividade por um ano, por despacho do Director Regional de Educação de Lisboa (DREL), proferido em 06.05.2005, tendo a requerente interposto recurso hierárquico desse despacho para o Secretário de Estado Adjunto e da Educação (SEAE), recurso que foi rejeitado, por extemporâneo, por despacho do SEAE de 27.09.2005, despacho este que a requerente não impugnou, vindo apenas requerer, em 02.08.2006, a presente providência de suspensão da eficácia do referido despacho do DREL, alegando ir instaurar uma acção administrativa especial com vista à anulação do mesmo, acção que, conforme referido no artº5º da contestação da entidade requerida, já terá sido instaurada.

O acórdão recorrido considerou que os supra transcritos preceitos do ED, designadamente o nº8 do artº75º, ao exigirem a interposição de um recurso hierárquico necessário para abrir a via contenciosa, se mantêm em vigor, visto que não foram revogados, nem expressa, nem tacitamente, pelo CPTA ou por qualquer diploma.

Assim sendo e tendo em conta que o recurso hierárquico interposto pela ora recorrente do referido despacho do DREL, havia sido indeferido, por extemporâneo e que era este indeferimento que a ora recorrente devia ter impugnado contenciosamente e não o despacho do DREL, concluiu ser evidente, nos termos do artº120º, nº1, b) do CPTA, a falta de fundamento da pretensão formulada ou a formular no processo principal, face à existência de uma circunstância impeditiva do conhecimento do mérito.

Assim, embora o acórdão também reconheça, como refere a recorrente nas suas alegações, a tendência para o alargamento da possibilidade de impugnação directa imediata dos actos administrativos e admita mesmo a possibilidade futura de vir a ser sustentada a inconstitucionalidade das disposições avulsas que prescrevem uma prévia reclamação ou recurso administrativo necessário, por violação da norma do artº268º, nº4 da Constituição, o certo é que acabou por entender que se mantêm em vigor as normas específicas anteriores do CPTA que, de modo claro, tornavam a impugnação contenciosa dos actos praticados por órgãos subalternos dependente de prévia impugnação hierárquica.
Portanto, a questão relevante que aqui importa clarificar é a de saber se se mantêm em vigor as disposições legais especiais que, na vigência da revogada LPTA, expressamente previam uma impugnação administrativa necessária como condição de abertura da via contenciosa de determinados actos administrativos, como é o caso do nº8 do artº75º do ED, ou se tais disposições se consideram revogadas face aos artº51º, 59º, nº4 e 5 do CPTA e ao artº268º, nº4 da CRP, como pretende a recorrente.

Com efeito não tem sido pacífica, pelo menos, desde a redacção do nº4 do artº268º da CRP, introduzida pela Lei nº1/89, de 8 de Julho (2ª revisão constitucional, que eliminou a referência à definitividade e executoriedade do acto administrativo, constante do nº3 do artº268º, na redacção inicial, como condição da sua recorribilidade contenciosa, passando a referir a garantia de recurso contencioso à lesividade do acto), a questão da compatibilidade, com este preceito constitucional, das disposições que prevêem impugnações administrativas necessárias.

Como é sabido, na vigência da LPTA, foi suscitada por alguma doutrina a questão da inconstitucionalidade superveniente do artº25ºdeste diploma, face ao nº4 do artº 268º da CRP, na versão de 1989, já que aquele preceito da LPTA dispunha que « só é admissível recurso dos actos definitivos e executórios», sendo que o citado preceito constitucional, na apontada redacção, deslocou a garantia de recurso contencioso da definitividade e executoriedade do acto, para a sua lesividade, como referimos (a favor da compatibilidade constitucional de tais normas, se pronunciaram, por exemplo, Vieira de Andrade, Em Defesa do Recurso Hierárquico, CJA nº 0, p. 13 e segs. e Mário Aroso de Almeida, As implicações de direito substantivo da reforma do contencioso administrativo, CJA nº34, p.71 e segs e contra, Vasco Pereira da Silva, Em Busca do Acto Administrativo Perdido, p. 667 e 674 e Ventos de Mudança…,CJA nº , p.11 e 66/89 e Paulo Otero, As garantas impugnatórias dos particulares no CPA, Scientia Iurídica, vol.XJI(nº235/237), p.58 e segs.).

Essa questão foi abundantemente apreciada por este STA, designadamente pelo Pleno da 1ª Secção e levada até ao Tribunal Constitucional, tendo, uniformemente, vindo a ser resolvida pela jurisprudência de ambos os Tribunais, no sentido da não inconstitucionalidade do artº25º da LPTA, no entendimento, em síntese, de que a consagração, na lei, de um meio de impugnação administrativa necessária, não contende, de per si, com a garantia de recurso contencioso acolhida no nº4 do artº268º da CRP, o que só aconteceria se o direito de acesso ao tribunal consagrado no artº20º da CRP, fosse, por essa via, suprimido ou restringido intoleravelmente, caso que não acontece com a impugnação necessária, já que o administrado pode sempre vir a impugnar judicialmente o acto que põe fim ao procedimento. A lesão do direito invocada, a existir, seria, por isso, meramente potencial (Cf. acs. Pleno do STA de 03.02.1996, rec. 41.608, de 07.05.96, rec. 32.592, de 09.11.99, rec. 45.085, de 18.02.2000, rec. 30.307, de 29.06.2001, rec. 46058, e de 18.04.3002, rec.46.058, bem como da Secção, de 21.05.92, rec. 30.391, de 16.02.94, rec. 32.904, de 07.03.96, rec. 39.216, de 14.11.96, rec. 32.132, de 25.06.98, rec. 43.603, de 12.05.99, rec.44.684, de 02.03.2000, rec.45.569, de 03.05.2001, rec. 46.888, de 05.12.2002, rec. 194/02, entre outros e Acs. Tribunal Constitucional nº 86/84, nº 39/88, vol.11º, 233, BMJ 374/1147, nº 28/92, DR II Série, nº69, de 22.03.85, p.3160, nº 9/95, nº 603/95, DR II, de, p. 3484, nº 24/96, nº 115/96, nº 499/96, de 20.03.1996, Proc. 383/93, nº 1002/96, nº 32/98, nº 676/98, nº 425/99, nº 431/99, nº124/00-P.231/99, nº 40/01 e nº 283/01, entre outros).

Posteriormente, com a nova redacção do nº4 do artº268º da CRP, introduzida pela Lei nº1/97, de 20.09, que veio incluir, expressamente, no direito à tutela jurisdicional efectiva, a impugnação de quaisquer actos administrativos que lesem direitos e interesses legalmente protegidos dos administrados, reacendeu-se a polémica da compatibilidade com o citado preceito constitucional, agora na versão de 1997, das impugnações administrativas necessárias (Cf. Vasco Pereira da Silva, De necessário a útil: a metamorfose do recurso hierárquico no novo contencioso administrativo, CJA nº47, p.21 e segs e Mário Aroso de Almeida, O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, 2ª edição, Almedina, p. 139 e Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa ( Lições), p. 269).

Mas quer este STA, quer o Tribunal Constitucional, se pronunciaram já, em vários arestos, pela compatibilidade do artº25º da LPTA, e, consequentemente, das normas que impõem uma prévia impugnação administrativa necessária para abrir a via contenciosa, com o citado preceito constitucional, na versão de 1997, que é a actual, reiterando a jurisprudência anterior, por considerarem que não é infirmada pelas alterações introduzidas no citado nº4 do artº268º da CRP com a revisão constitucional de 1997.

Refere-se, por exemplo, a este propósito, no acórdão do Tribunal Constitucional nº 425/99:
« (…) Após a Lei Constitucional nº1/97, neste artigo 268º, nº4, passou a referir-se o direito a uma tutela jurisdicional efectiva, incluindo, nomeadamente, a impugnação de quaisquer actos administrativos que lesem os administrados, independentemente da sua forma.

Tal norma contém, pois, uma garantia de protecção jurisdicional de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias. Dela decorre, designadamente, a “ inconstitucionalidade de normas erguidas como impedimento legal a uma protecção adequada de direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares”, bem como um dever de configuração adequada dos instrumentos de tutela judicial já existentes (assim, J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, 1998, pg.457).

Todavia, não se vê que da consagração dessa garantia de protecção jurisdicional, dirigida à protecção dos particulares através dos tribunais, deste direito de impugnação dos actos administrativos lesivos, haja que decorrer a impossibilidade do condicionamento, pelo legislador, de tal recurso contencioso a um recurso hierárquico dos actos administrativos proferidos por órgãos subalternos da Administração, ou o que é o mesmo, que dela decorra uma obrigatória impugnabilidade jurisdicional imediata desses actos, independentemente da sua reapreciação por órgãos superiores. Do artº268º, nº4 da Constituição não resulta, na verdade, como se diz no acórdão recorrido, “ a ideia de que todo o acto que não aquiesça às pretensões de um cidadão é imediatamente recorrível para os tribunais.”

Desde logo, um acto administrativo da autoria de um subalterno, como acto precário, susceptível de ser alterado por órgãos superiores, não reveste também carácter lesivo, como última palavra da Administração sobre a matéria, que não possa ser corrigida pela própria Administração. A reacção contra a potencial lesão resultante desse acto, igualmente precária, não tem, pois, que poder efectivar-se imediatamente através do recurso aos tribunais, podendo tal reacção ser condicionada à reapreciação pela própria Administração.

Por outro lado, da obrigatoriedade de um prévio recurso hierárquico não resulta a inviabilização, ou sequer, a inadequação da tutela de direitos interesses dos particulares. Apenas se impõe a necessidade de impugnação hierárquica prévia dos actos de órgãos subalternos, ficando, em qualquer caso, assegurado o posterior recurso contencioso.
(…)
A tutela jurisdicional efectiva dos administrados não resulta, nem inviabilizada, nem sequer restringida pela previsão de tal via hierárquica necessária, como meio de, em primeira linha, tentar obter a satisfação do interesse do administrado pela revisão do acto administrativo praticado pelo órgão subalterno da Administração, previamente, ao sempre assegurado recurso jurisdicional. Trata-se apenas de condicionamento legítimo do direito de recurso contencioso, ficando sempre ressalvada a garantia de tutela judicial em todos os casos concretos (…)» (no mesmo sentido, se pronunciaram os acs. TC nº 283/01 e nº 235/03)

Igualmente o STA tem reafirmado que só há inconstitucionalidade se o percurso imposto por lei para alcançar a via contenciosa suprimir ou restringir intoleravelmente o direito de acesso ao tribunal ou, por qualquer forma, prejudicar de forma desproporcionada ( ou arbitrária) a tutela judicial efectiva dos cidadãos, o que não acontece, em princípio, com as impugnações administrativas necessárias, maxime, o recurso hierárquico necessário. (cf. Ac. Pleno de 06.02.03, rec.1865/02 e acs. da Secção, de 09.04.2003, rec.350/03, de 02.10.03, rec. 1005/03, entre outros)

Com efeito, além de se encontrar assegurada a via contenciosa, a impugnação administrativa quando necessária gera, em princípio, a suspensão automática dos efeitos do acto impugnado, como decorre dos artº163º, nº1 e 170º do CPA, além de que é um meio de reacção mais fácil e barato, proporcionando ainda vantagens de ordem prática, já que o recurso hierárquico necessário, obriga a que o superior hierárquico, supostamente mais habilitado, se pronuncie sobre o caso, evitando, eventualmente, a impugnação judicial, e, portanto, as despesas inerentes, além de proporcionar mais tempo para a preparação da impugnação judicial e do eventual pedido de suspensão de eficácia do acto, no caso da decisão ser desfavorável (cf. neste sentido, Vieira de Andrade, obra e local citados).

Mas, se assim era antes da entrada em vigor do CPTA em 01.01.2004, não há razão para deixar de o ser, após a entrada em vigor deste diploma legal, uma vez que o mesmo se limitou a concretizar a referida norma constitucional (citado nº4 do artº268º da CRP, na versão de 1997), a qual, entretanto, não sofreu qualquer alteração, pelo que a jurisprudência referida mantém hoje inteira actualidade. E, assim sendo, pelas razões já referidas, continua a não existir qualquer incompatibilidade, com o citado preceito constitucional, das normas que hoje especialmente prevejam impugnações administrativas necessárias.

Pelo que, concordando com essa jurisprudência e transpondo-a para a situação sub judice, forçoso é concluir pela compatibilidade do nº8 do artº75º do ED com o citado preceito constitucional.

Com efeito, a exigência, contida no nº8 do artº75º do ED, de interposição de recurso hierárquico necessário dos despachos que apliquem quaisquer penas disciplinares que não sejam da exclusiva competência de um membro do Governo, não suprime nem restringe intoleravelmente o direito de acesso aos tribunais (artº20º da CRP), nem viola o direito à tutela judicial efectiva (artº268, nº4 da CRP), pois o administrado pode sempre impugnar contenciosamente, nos termos gerais, eventual decisão desfavorável da impugnação administrativa, não sendo também afectada a sua utilidade, na medida em que, nos termos do nº6 do mesmo preceito legal, a interposição daquele recurso hierárquico suspende os efeitos do acto punitivo, pelo que estamos perante um condicionamento legítimo.

Consequentemente, o citado preceito do ED não padece de inconstitucionalidade material superveniente, por violação do nº4 do artº268º da CRP.
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Resta, pois, apreciar se o nº8 do artº75º do ED foi revogado pelos artº51º, nº1 e 59º, nº4 e 5 do CPTA, como também pretende a recorrente.

É verdade que os defensores da inconstitucionalidade das normas que prevêem impugnações administrativas necessárias vêem, nos referidos preceitos do CPTA, uma vontade legislativa de afastar definitivamente a impugnação administrativa necessária, de a proibir, vontade que pretendem corresponder também à vontade do legislador constitucional.

Só que, como vimos, não foi essa a vontade do legislador constitucional, e também não resulta do CPTA, designadamente dos citados preceitos legais, que tenha sido essa a intenção do legislador ordinário, nem se compreende sequer a necessidade de absoluta proibição da impugnação administrativa necessária, se, como se referiu, tal condicionamento não põe, em princípio, em causa a tutela jurisdicional efectiva.

O que se passou, foi que o legislador do CPTA, concretizando agora, na lei ordinária, o alargamento, pretendido pelo legislador constitucional, da garantia de recurso contencioso a quaisquer actos administrativos lesivos dos direitos e interesses dos administrados, veio inverter a regra, até então existente, do recurso hierárquico necessário, para a regra do recurso hierárquico facultativo, permitindo que o administrado possa agora optar entre só impugnar o acto contenciosamente, só impugnar o acto administrativamente, ou impugnar um e outro, como decorre dos artº51º, nº1 e 59º, nº4 e 5 , citados pela recorrente.

Dispõem estes preceitos, que:
Artº51º
1. Ainda que inseridos num procedimento administrativo, são impugnáveis os actos administrativos com eficácia externa, especialmente aqueles cujo conteúdo seja susceptível de lesar direitos ou interesses legalmente protegidos.
(…)
Artº59º
(…)
4. A utilização de meios de impugnação administrativa suspende o prazo de impugnação contenciosa do acto administrativo, que só retoma o seu curso com a notificação da decisão proferida sobre a impugnação administrativa ou com o decurso do respectivo prazo legal.
5. A suspensão do prazo previsto no número anterior não impede o interessado de proceder à impugnação contenciosa do acto na pendência da impugnação administrativa, bem como de requerer a adopção de providências cautelares.

É verdade que quem sustentava a inconstitucionalidade das normas que previam impugnações administrativas necessárias já antes do CPTA, continua hoje a fazê-lo após o CPTA, defendendo que a impugnação dita necessária é hoje um condicionamento desnecessário, porque afinal, face aos citados preceitos do CPTA, a impugnação administrativa tem sempre carácter facultativo e suspende o prazo de impugnação contenciosa do acto, sem prejuízo do administrado poder impugnar contenciosamente o acto na pendência da impugnação administrativa ou decorrido o prazo legal para a sua decisão, o que significa que a impugnação necessária perdeu qualquer utilidade, já que a sua única razão de ser era permitir o recurso contencioso (Cf. Vasco Pereira da Silva, De necessário a útil…, CJA nº47, p.21 e segs., maxime p. 23 e 25).
Efectivamente, hoje, face aos referidos preceitos do CPTA e contrariamente ao que acontecia face ao revogado artº25º da LPTA, a regra é o carácter facultativo da impugnação administrativa, seja reclamação, seja recurso hierárquico. Houve, pois, neste aspecto, uma mudança de paradigma.

Mas o estabelecimento desta regra, não põe em causa as disposições legais especiais que previam impugnações administrativas necessárias, pois tais normas não foram expressamente, nem inequivocamente, revogadas pelo CPTA, ou por qualquer outro diploma legal ( artº7º , nº3 do C. Civil).

Mesmo quem defende que tais normas não se encontram em vigor, não afirma a sua revogação pelo CPTA, antes faz decorrer essa revogação ou antes caducidade, por falta de objecto, de uma pretensa consagração constitucional da proibição da impugnação administrativa necessária contida no nº4 do artº268º da CRP, ou seja, em última instância, da inconstitucionalidade material superveniente das referidas normas.

Ora, já vimos, que tal argumentação não tem condições de procedência.
Portanto, rejeitado o argumento da inconstitucionalidade das impugnações administrativas necessárias, e não se mostrando revogadas as normas que especialmente as prevêem, nem desprovidas de utilidade, há que concluir hoje, face ao CPTA, que tais normas se mantêm em vigor. (cf. neste sentido, Mário Aroso de Almeida, O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, 2ª edição, Almedina, p. 139 e também Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), 4ª edição, Almedina, p. 269 e seg.).

Sendo certo que quando o legislador, na vigência da LPTA, previa especialmente o recurso hierárquico necessário, sendo ele então a regra, era porque nesse caso, havia outras razões que justificavam tal exigência, que não, ou não só, a razão que é apontada, de ser esta a via de se permitir o recurso contencioso, pois há que presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artº9º do C. Civil), designadamente essa seria a única via de suspender automaticamente a produção de efeitos imediatos na esfera jurídica do administrado, de um acto praticado por um subalterno, mesmo em matéria da sua competência exclusiva (e continua a ser, já que a impugnação facultativa não suspende os efeitos do acto, mas apenas o prazo da impugnação contenciosa, daí a necessidade de se prever no nº5 do artº59º do CPTA, a possibilidade do administrado impugnar contenciosamente o acto e requerer providências na pendência da impugnação administrativa, de outro modo, estar-se-ia aqui sim a violar a tutela judicial efectiva).

Portanto, a questão de saber se a impugnação necessária deixou de o ser, só pelo facto de se permitir hoje, como regra, a impugnação contenciosa imediata dos actos administrativos, deve ser respondida negativamente. A regra é, de facto, essa, mas pode haver excepções, já que o legislador do CPTA não as exclui.

E uma dessas excepções é a prevista no nº8 do artº75º do ED que se encontrava em vigor à data em que foi proferido o despacho do DREL, cuja suspensão aqui se pretende.

Face a tudo o anteriormente exposto, há que concluir que o nº8 do artº78º do ED, ao impor a interposição de um recurso hierárquico necessário, não padece de inconstitucionalidade material superveniente face ao nº4 do artº268º da CRP/97, nem se encontra revogado pelo CPTA, ou por qualquer outro diploma, pelo que se mantém em vigor.

Pelo que, tendo sido julgado intempestivo o recurso hierárquico interposto pela ora recorrente ao abrigo do citado preceito legal, e não tendo a recorrente impugnado essa decisão, falta um pressuposto processual necessário para abertura da via contenciosa, o que obsta ao conhecimento do mérito da causa.

Consequentemente, não merece reparo o acórdão recorrido.
*
IV- DECISÃO

Termos em que, acordam os juízes deste Tribunal em negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 28 de Dezembro de 2006. - Fernanda Xavier (relatora) – Azevedo Moreira - Rosendo José.

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