terça-feira, 30 de novembro de 2010

Sistema Administrativo de tipo francês versus Sistema Administrativo Anglo-Saxónico


Antecedentes históricos:

Primeiramente, cumpre traçar uma linha histórica que antecedeu o surgimento dos sistemas administrativos em análise, uma vez que os modelos jurídicos de organização, funcionamento e controlo da Administração variaram ao longo das épocas que perpassaram.

Sumariamente, analisemos o designado Sistema Administrativo Tradicional que vigorou na Europa até aos séculos XVII e XVIII.

Este sistema era, então, caracterizado por:

1.Indeferenciação entre as funções administrativa e jurisdicional;
2.Não subordinação da Administração Pública ao principio da legalidade.

Consequências deste sistema de administração:

1.1- Inexistência de separação de poderes; o Rei era simultanemente o supremo administrador e o supremo juiz;

2.1- Sem Estado de Direito, as garantias dos particulares eram insuficientes, uma vez que a Administração Pública não estava vinculada à Lei, existindo apenas normas avulsas, que podiam, contudo, ser afastadas por critérios de conveniência administrativa ou de utilidade política.

As Revoluções Liberais, nomeadamente a Grande Revolução em Inglaterra (1688) e a Revolução Francesa (1789), provocaram uma profunda alteração nos sistemas administrativos europeus, uma vez que influenciaram fortemente os sistemas administrativos dos restantes países da Europa.

Consequências gerais das Revoluções Liberais:

Nascimento dos sistemas administrativos modernos, baseados na separação de poderes e no Estado de Direito, o que conferiu uma maior garantia dos cidadãos face à Administração Pública, que lhes permite invocar, perante esta, os seus direitos e interesses legítimos.


A implantação dos sistemas administrativos modernos seguiu caminhos distintos em Inglaterra e em França, daí o surgimento do designado Sistema Administrativo anglo-saxónico e do Sistema Administrativo de tipo francês.


Comecemos por caracterizar o Sistema administrativo de tipo anglo-saxónico.

Este sistema, com origem em Inglaterra, vigora na generalidade dos países anglo-saxónicos, nos EUA e influencia fortemente os países da América Latina, especialmente o Brasil.

1.Separação de Poderes: por força da lei de abolição da Star Chamber (1641), o Rei ficou impedido de resolver questões de natureza contenciosa; e foi proíbido de dar ordens aos juizes, transferi-los ou demiti-los (Act of Settlement, 1701)

2.Estado de Direito: os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos foram consagrados no Bill of Rights (1689), daqui decorrendo que todos os cidadãos ingleses estavam submetidos ao direito comum (common law).

3.Sujeição da Administração aos tribunais comuns: existência de um só sistema judicial para o Estado e Particulares, pelo que o controlo jurisdicional da actuação administrativa está submetida aos tribunais comuns, sendo que os litígios entre esta e os particulares eram resolvidos não em tribunais especiais (inexistentes) mas nos tribunais comuns.
Daqui decorre que toda a Administração Pública, orgãos e agentes estão subordinados ao direito comum (Rule of Law).

4.Execução judicial das decisões administrativas: a Administração não pode executar as decisões administrativas por autoridade própria; necessidade de recorrer aos tribunais comuns para as tornar exequíveis.

5.Garantias jurídicas dos Particulares: estes podiam reagir contra ilegalidades e abusos da administração pública, através dos Tribunais Comuns, que como vimos, gozam de plena jurisdição face à Admnistração.


Caracterização do Sistema administrativo de tipo francês:

Com origem em França, vigora em quase todos os países da Europa Ocidental, com variantes em Itália e na República Federal Alemã. Em Portugal, passou a vigorar a partir de 1832.

1.Separação de poderes: diferenciação entre o poder executivo e poder judicial: o poder executivo não podia imiscuir-se na competência dos tribunais assim como o poder judicial não podia interferir no funcionamento da Administração Pública.

2.Estado de Direito: confere aos cidadãos o direito de invocar direitos subjectivos públicos contra o Estado (art 16º DDHC)

3.Sujeição da Administração aos Tribunais Administrativos: Em 1799, são criados tribunais administrativos, destacando-se o Conseil d'État, incumbidos de fiscalizar a legalidade dos actos administrativos e julgar o contencioso no ambito dos contratos e responsabilidade civil.
Nota: Impropriamente designados como tribunais administrativos não o eram na realidade; tratavam-se de orgãos especiais da administração publica compostos por funcionarios públicos que desempenhavam estas funções, pelo que se punha em causa a imparcialidade destes “tribunais”.


4.Subordinação da administração ao direito administrativo: O Droit administratif, constituido por normas de direito público, que confere à administração pública poderes de autoridade, visto que se considera que a administração não está na mesma posição que os particulares, uma vez que prossegue o interesse publico. Dotada de especiais poderes de autoridade, dos quais se destaca o privilege de l'execution d'office, que se traduz na utilização de meios coactivos próprios, para executar as suas decisões, sem ter de recorrer aos tribunais.

5.Garantias juridicas dos Particulares: podiam reagir contra abusos e ilegalidades praticadas pela administração, através dos tribunais administrativos. Contudo, estes apenas podiam anular o acto, se este fosse ilegal, não podendo, consequentemente, condenar a administração à pratica de determinado acto e/ou conduta.
Nota: Daqui resulta que as garantias dos particulares são menores neste tipo de sistema administrativo em comparação com o sistema administrativo anglo-saxónico.


Chegados a este ponto, cumpre agora estabelecer as diferenças entre estes dois sistemas:

Quanto ao controlo jurisdicional da Administração, o sistema administrativo de tipo anglo-saxónico, entrega-o aos tribunais comuns; o sistema administrativo de tipo francês, aos tribunais administrativos. Assim, unidade de jurisdição no primeiro, e dualidade de jurisdições, no segundo.

Quanto ao direito regulador da Administração, no sistema de tipo britânico, é direito comum, basicamente direito privado; no sistema de tipo francês, é direito administrativo, que é direito público.

Quanto à execução das decisões administrativas, o sistema de tipo britânico fá-lo depender de sentença do tribunal; no sistema de administração francês dispensa-se a intervenção prévia de qualquer tribunal; a administração dispõe de autoridade própria.

Quanto às garantias dos particulares, a Inglaterra confere aos tribunais comuns amplos poderes de injunção face à Administração, que lhes fica subordinada tal como a generalidade dos cidadãos; em França, os tribunais administrativos só podem anular decisões ilegais ou condenar no pagamento de indemnizaçoes, ficando a Administração independente do poder judicial.


Evolução dos sistemas até à actualidade:

As mudanças ocorridas no século XX vieram determinar uma aproximação dos dois sistemas, relativamente a alguns aspectos :

Controlo jurisdiconal da Administação: mantêm-se, essencialmente, as diferenças acima referidas. Em Inglaterra, surgiram os designados administrative tribunals; em França, aumentaram os litígios entre os particulares e o Estado submetidos ao controlo dos tribunais judiciais. Contudo, os administrative tribunals não são em nada semelhantes aos tribunaux administratifs de França: tratam-se de orgãos administrativos independentes, que decidem questões de direito administrativo em matérias especificas, de cujas decisões cabe recurso para os tribunais comuns. Por outro lado, o aumento da intervenção dos tribunais judiciais nas relações entre a Administração e os Particulares em França, deve-se, sobretudo, ao facto de a administração ter passado a actuar em maior número sob a égide de direito privado.

Direito regulador da Administração: a passagem para o Estado Social de Direito, teve como consequência em Inglaterra, uma maior intervenção da administração pública em funções de prestação de serviços culturais, educativos, sanitários e assistencias, surgindo assim inúmeras leis administrativas (administrative law); a administração francesa teve de passar a actuar sob a égide do direito privado, nomeadamente através das empresas públicas, obrigadas, pelas funções que desempenham, a funcionar nos moldes do direito comercial, e através da prestação serviços públicos, muitas vezes submetidos ao direito civil.

Execução das decisões administrativas: as decisões dos administrative tribunals são imediatamente obrigatórias para os particulares e não carecem de confirmação ou homologação judical, o que resulta numa aproximaçao ao tipo francês; do lado francês, surge a possibilidade de suspensão da eficácia de decisões unilaterais da Administração Pública.

Garantias juridicas dos particulares: sendo maiores em Inglaterra, no sistema de tipo francês os tribunais ganham cada vez mais poderes declarativos face à Administração, nomeadamente a possibilidade de poderem condenar a administração a um comportamento devido.

Surgimento em ambos os países da mais moderna instituição de protecção dos particulares face à administração: em Inglaterra, o Parliamentary Commissioner for Administration, 1967; em França, o Médiateur, 1963. (Provedor de Justiça)


Em conclusão, houve uma aproximação dos dois sistemas essencialmente no direito regulador da administração, no regime de execuçao das decisões administrativas e no elenco de garantias juridicas dos particulares.

As grandes diferenças mantêm-se ao nível do controlo jurisdicional da administração: no sistema de tipo anglo-saxónico, controlo pelos tribunais comuns; no sistema de tipo francês, controlo pelos tribunais administrativos.
Ou seja, Unidade vs Dualidade de Jurisdições.


Nota final para mencionar a Reforma do Contencioso Administrativo, de 2002/2004, em Portugal, que, por influência do modelo alemão 1, veio aproximar o nosso país do direito administrativo de tipo britânico, em virtude do reforço dos poderes de controlo dos tribunais administrativos sobre a actuação da Administração Pública.



1
A reforma alemã de 1960, em que a lei de processo contencioso administrativo prevê não apenas a acção de anulação de actos ilegais e a acção declarativa da existência ou inexistência de situações juridicas mas também acções de condenação da Administração ao cumprimento de um dever.
O mesmo aconteceu em Portugal, a partir de 1 de Janeiro de 2004, com a entrada em vigor da Reforma de Contencioso Administrativo, fortemente influenciada pelo modelo alemão, que aumentando os poderes de controlo dos tribunais administrativos sobre a Administração Pública, teve como consequência o reforço das garantias jurídicas dos particulares perante a Administração Pública.
Teresa Tavares
Aluna n.º 17674

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