quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Breve estudo sobre a competência material dos Tribunais Administrativos e Fiscais em matéria de responsabilidade civil e de contratos

É já bem conhecida de todos a expressão com que se apelidou a entrada em vigor da Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro (que introduziu o novo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais) e da Lei nº 15/2002, de 22 de Fevereiro (que introduziu o novo Código de Processo nos Tribunais Administrativos): reforma do contencioso administrativo. De resto, bem justa é a designação. No seguimento da revisão constitucional de 1997, que explicitou, através dos nºs 4 e 5 do artigo 268º da CRP, um verdadeiro direito à tutela jurisdicional efectiva dos particulares perante a Administração Pública, o legislador ordinário foi forçado a alterar, radicalmente, o panorama da justiça administrativa, introduzindo, para além de outras, inovações de relevo em matéria de responsabilidade civil e de contratos.
Todavia, apesar do alcance e significado da reforma do contencioso administrativo, os tribunais continuam a sentir imensas dificuldades nestas matérias, nomeadamente na distinção entre actos de gestão pública e de gestão privada, e entre contratos administrativos e contratos privados da Administração.
No âmbito das referidas matérias de responsabilidade civil e de contratos, a proposta de lei do Governo à Assembleia da República baseava-se num critério objectivo, da natureza da entidade demandada (que acolhe, diga-se, toda a nossa preferência): sempre que um litígio envolvesse uma entidade pública, por lhe ser imputável o facto gerador do dano ou por ser uma das partes do contrato, tal litígio devia ser submetido à apreciação da jurisdição administrativa. Em consequência, os tribunais administrativos e fiscais passariam a ser os materialmente competentes para a apreciação de todas as questões de responsabilidade civil e de contratos que envolvessem a Administração, não curando de saber se os actos praticados seriam de gestão pública ou de gestão privada, ou se os contratos estariam subordinados a um regime substantivo de direito público ou de direito privado (1).
O artigo 4º do ETAF consagrou estas soluções em matéria de responsabilidade civil extracontratual, mas não já sobre os litígios dos contratos da Administração.
Deste modo, sem embargo de algumas restrições, podemos hoje afirmar com segurança que só os tribunais administrativos e fiscais são os competentes para apreciar todas as questões relativas à responsabilidade civil extracontratual da Administração, independentemente de se tratar de actos praticados no âmbito de um exercício de gestão pública ou de gestão privada (alíneas g) e h) do nº 1 do artigo 4º do ETAF). Embora esta distinção continue a revelar-se problemática e de especial complexidade em diversas situações, a verdade é que deixou de ser relevante para efeitos de determinação da jurisdição competente para apreciar o litígio, o que bem revela uma salutar preocupação do legislador no aperfeiçoamento do princípio geral da plenitude da jurisdição administrativa e no cumprimento do comando constitucional da tutela jurisdicional efectiva dos particulares.
Já no que toca ao litígio dos contratos, importa avançar com redobrada cautela, isto porque continua a ser aposta do sistema jurisdicional a bipartição de competências entre a jurisdição administrativa e a jurisdição comum. A técnica do ETAF, para a delimitação de competências dos tribunais administrativos e fiscais, consistiu em formular critérios de qualificação dos contratos. Em primeiro lugar, o critério do procedimento pré-contratual: a jurisdição administrativa é competente para apreciar todas as questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais exista lei que os submeta a um procedimento pré-contratual de direito administrativo (alínea e) do nº 1 do artigo 4º). Por obrigação da (já abundante) legislação comunitária, o ordenamento jurídico submete vários contratos a procedimentos pré-contratuais específicos. Quando assim seja, e independentemente de se tratar de contratos tradicionalmente de direito privado ou público, é a jurisdição administrativa a materialmente competente.
Em segundo lugar, o critério substantivo: a jurisdição administrativa é competente para apreciar todas as questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente acerca dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos do respectivo regime substantivo, ou de contratos que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público (alínea f) do nº 1 do artigo 4º). Ou seja, foi intenção do novo ETAF, em nossa opinião, abandonar o critério da entidade contratante, e definir as competências dos tribunais administrativos apenas em função da natureza e do regime legal específico de cada contrato. Isto porque é perfeitamente possível perceber que um litígio sobre um determinado contrato seja da competência material da jurisdição administrativa, e que o mesmo contrato tenha sido celebrado por pessoas colectivas de direito público, por entidades públicas sob a forma privada ou por entidades privadas de mão pública. O que mais releva é a sujeição do contrato a normas de direito público, o que sempre acarreta um esforço do intérprete ou do aplicador do Direito na procura desse regime, na certeza, porém, de que estão hoje bem melhor definidas as competências, em matéria contratual, entre a jurisdição administrativa e jurisdição comum.
Uma última referência: é ainda da competência dos tribunais administrativos e fiscais a apreciação da invalidade de quaisquer contratos (independentemente de serem administrativos ou de direito privado) que directamente resulte da invalidade do acto administrativo no qual se fundou a respectiva celebração (alínea b) do nº 1 do artigo 4º). Tal solução é apenas o corolário, a nosso ver, de uma cláusula geral de suficiência e plenitude da jurisdição administrativa: a submissão de eventuais contratos de direito privado aos tribunais administrativos, em virtude da origem do contrato - um acto administrativo - só pode compreender-se no âmbito da completa remissão para esta ordem de tribunais de toda e qualquer relação contratual que tenha na sua origem uma relação jurídica administrativa. Bem andou, pois, o legislador na consagração desta solução.

Dr. Pedro Cruz e Silva (Advogado) in Verbo Jurídico, Outubro de 2006

Carla Cid
Aluna 11222

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