terça-feira, 14 de dezembro de 2010

O CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO FRANCÊS
O Contencioso Administrativo instituído com a Revolução Francesa é fruto de uma concepção muito singular do princípio da separação de poderes.
A separação de poderes consiste na garantia da não interferência, da não ingerência dos poderes legislativo, judicial e executivo ou administrativo. No entanto, não foi esse o entendimento tido aquando da instituição do Contencioso Administrativo. Os artigos 7º do Decreto de 22 de Setembro de 1789, 13º da Lei 16-24, de Agosto de 1790, e 3º da Constituição de 1789, impediam os Tribunais de julgar a administração. Daqui resulta que julgar a Administração era ainda administrar, portanto, parte dela e não uma função independente. Esta é a concepção singular do principio da separação de poderes, ao não submeter a actividade administrativa aos tribunais, cria uma situação perversa em que a actividade de julgar a administração é ainda administrar. Em nome da separação de poderes surge uma confusão, uma concentração, destes dois poderes num só decisor, a administração “ administra” e “ julga “ a sua própria actividade. Sendo a Administração juiz em causa própria, daí a designação de administrador-juiz
Para que entendamos a opção legislativa, resultante desta interpretação do princípio da separação de poderes, devemos ter em conta a realidade social e politica. Ora, da Revolução Francesa advém uma vontade de ruptura com todo o passado, no entanto, nem todas as mudanças resultaram em rupturas, é o caso desta.
Na fase final do antigo regime os tribunais tiveram um papel determinante na luta contra o absolutismo real, um papel interventivo muito forte. Os revolucionários, agora no poder, não querem que tal força politica dos tribunais volte a ser exercida. Estes devem apenas julgar. Assim, subtraem o poder administrativo ao crivo dos tribunais, garantido que estes não irão perverter ou desviar o exercício administrativo. Por outro lado, o Conselho de Estado, criado em 1799, é o herdeiro do extinto Conselho do Rei, criado pelas mesmas motivações, a desconfiança em relação aos parlamentos, e o receio de ingerência dos tribunais judiciais na Administração. Para assegurar a independência da Administração opta-se pela solução desta se julgar a si mesma.
Desta forma, o Contencioso Administrativo nasce enfermo, em que Administração e Justiça se confundem, é o período do administrador-juiz, que pode ser dividido em três:
- Numa primeira fase, até 1799, o julgamento dos litígios é apreciado pelos mesmos órgãos da Administração, sendo, neste caso, o recurso à justiça, uma mera reclamação, é a fase da total confusão e sobreposição entre Administração e Justiça;
- O Conselho de Estado criado em 1799, emitia pareceres, sujeitos a homologação do Chefe de Estado, portanto dependentes, fase denominada por justiça reservada, que durou até 1872;
- A partir desta data as decisões do Conselho de Estado deixam de ser meros pareceres sujeitos a homologação, tornam-se definitivas. A partir desta data, 1872 a justiça administrativa encontra-se juridicamente delegada, daí a denominação de “ justiça delegada “;
O Conselho de Estado actua com base numa delegação de poderes e continua a ter o estatuto jurídico de órgão da Administração, o que significa a manutenção do sistema do administrador juiz. Ainda não podemos falar em Tribunais Administrativos, apesar das mudanças no sistema e da importância do Conselho de Estado nesta fase da “ justiça delegada “, podemos dizer que julgar ainda é administrar.
A jurisdicionalização do Contencioso Administrativo em França dá-se de forma lenta e progressiva no tempo, tendo como momento decisivo a passagem da justiça reservada para a justiça delegada, bem como o acórdão Caddot. Por esta sentença é reconhecido o direito de indemnização em caso de responsabilidade administrativa, sendo que, a partir daqui o Conselho de Estado poderá ser considerado, grosso modo, como a primeira instância do Contencioso Administrativo “.
As características jurídicas do Estado Social, em comparação à do Estado Liberal, implicam uma muito maior aproximação da Administração aos particulares. Progressivamente a Administração deixa de ser meramente executiva, agressiva, típica do Estado Liberal, para passar a ser constitutiva de direitos e prestadora de serviços. Desta nova natureza prestadora da Administração resulta um novo modelo de relacionamento entre esta e os particulares, caracterizado por uma maior bilateralidade e permanência, no sentido em que o relacionamento deixa de ser esporádico, momentâneo e tipicamente conflitual para passar a ser regular, permanente, e de colaboração. Este novo paradigma obriga à “ elevação “ dos particulares a sujeitos de direitos, titulares de posições jurídicas de vantagem em relação à Administração.
A longa marcha da jurisdicionalização é caracterizada pela transformação gradual do Direito Administrativo de “direito dos privilégios especiais da administração“ em “direito regulador das relações administrativas “, dos órgãos de controlo da Administração em tribunais administrativos, resultando na progressiva autonomização da jurisdição administrativa relativamente à Administração, culminando na criação de um sistema de duas instâncias, e na instituição da jurisdição plena de cada uma delas com a transformação, em 1953, dos Conselhos de Prefeitura em Tribunais Administrativos.
Actualmente o Contencioso Administrativo francês afirma-se por uma plena jurisdicionalização, em que o juiz é absolutamente independente e goza de plenos poderes face à Administração, e pela afirmação da dimensão subjectiva, destinada à protecção dos direitos dos particulares. Esta dupla dimensão é realizada em França pelo Direito Constitucional, tendo como fonte a jurisprudência, consagrada por decisões do Conselho Constitucional, acompanhada de inúmeras reformas legislativas. O Conselho Constitucional, por uma decisão de 22 de Julho de 1980, equipara as naturezas da jurisdição administrativa e da jurisdição ordinária, estabelecendo que a independência dos juízes tem um valor constitucional, conforme com o artigo 64º, nº. 1, constitucionalizando assim a justiça administrativa. Através de uma de decisão de 23 de Janeiro de 1987, consagra a dimensão subjectiva do Direito Administrativo, ao afirmar que figura entre os princípios fundamentais reconhecidos a anulação ou reforma das decisões tomadas pelas autoridades administrativas no exercício dos poderes públicos. Esta dimensão subjectiva irá ainda ser desenvolvida, nomeadamente pela decisão do Conselho Constitucional de 9 de Abril de 1996, em que “ consagra o direito à protecção judiciária, deduzindo-o do art. 16º. da Declaração dos Direitos do Homem. Agora, o direito de acesso à justiça é conferido a cada particular, ligado à cidadania, todo o cidadão tem direito a um recurso efectivo perante um juiz independente e com plenos poderes face à Administração.
Bernardo Rodrigues, sub turma 2, nº 17 613.

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