domingo, 19 de dezembro de 2010

A célebre querela Dicey vs Hauriou sobre os dois sistemas administrativos predominantes:a visão de Sabino Cassese

Em 1885, o constitucionalista inglês A.V. Dicey fez uma primeira análise às diferenças entre os dois sistemas proeminentes (o britânico e o francês); veio-se a gerar uma querela famosa a partir do momento em que o publicista francês Maurice Hauriou respondeu com a sua visão dessas diferenças.

Para Dicey, os dois sistemas eram incompatíveis porquanto o rule of law (“no man is above the law, (...), every man, whatever be his rank or condition, is subject to the ordinary law of the realm and amenable too the jurisdiction of the ordinary tribunals”) assentava na igualdade entre os particulares e a Administração, contrariamente ao droit administratif que pressupunha uma relação de desigualdade; Dicey acusava ainda os tribunais administrativos de não terem juízes imparciais mas sim autênticos funcionários públicos ao serviço dos interesses governamentais (sublinhando a ideia que os tribunais judiciais não tinham que fazer nenhuma distincção ente pessoas privadas e o Estado). Defendia Dicey que não existia em Inglaterra direito administrativo tal como era aplicado em França (quanto mais não fosse pelo facto de a aplicação desse direito continuar a pertencer aos tribunais comuns _ o que era condição para o rule of law).

Já Hauriou sublinhava a importância da função administrativa, de uma resposta eficiente às necessidades do interesse colectivo e de uma boa gestão de assuntos de utilidade pública. Mais, defendia que tanto a Inglaterra como França desenvolveram dois sistemas diferentes mas que garantiam o mesmo propósito: um modo de submeter a Administração ao direito. Para tal, a Inglaterra adoptara um État sans régime administratif, sem outra autoridade administrativa que não a do juiz ordinário (pelo que lhe chama système d’administration judiciaire). Em contraponto a este sistema possível, Hauriou apresenta o modelo francês, de État à régime administratif, o qual acaba por fazer uma marcada defesa pelo facto de o mesmo ter toda uma outra dimensão: desde logo, a existência de uma centralização de todas as funções administrativas num só poder executivo fazia que os agentes administrativos estivessem sob o controle da autoridade hierárquica dos chefes e a adstrição a regras administrativas próprias (e já não a leis comuns e ao julgamento de tribunais comuns); tal também permitia o privilège de l’éxécution d’office, também conhecido por procédure de la décision exécutoire sans autorization préalable de la justice (em que as autoridades administrativas tinham o poder de executar coercivamente as suas decisões independentemente de decisão jurisdicional). Por estas razões, bem como pelo facto de julgar saudável uma separação demarcada entre poder executivo e o poder judicial, Hauriou sustentava que este système de administration exécutive era o mais preferível.

Sabino Cassese, notável jurista italiano, avalia no seu “Le basi del dirito amministrativo” esta dicotomia entre os dois sistemas, trazendo uma visão diferente tanto de Dicey (que não encontrava nenhum de ligação com o droit administratif, pelo menos no início da querela).

Cassese vem comentar a posição de Albert Van Dicey (na sua opinião, o mais importante jurista inglês dos séculos XIX e XX _ de facto, Dicey influenciou decisivamente a realidade jurídica inglesa, tendo deixado um cunho ideológico liberal bastante marcado na sua doutrina), encontrando alguns pontos criticáveis na sua argumentação. Dicey era, inicialmente, tão firme na sua opinião que sustentava inclusive que “In England, we know nothing of administrative law; and we wish to know nothing”. De facto, para Dicey o droit administrative era um direito com regras especiais que criavam privilégios e que era manifestamente contra os princípios liberais. E, ele considerava que em Inglaterra deveria prevalecer um rule of law que se consubstanciasse num só direito, dito “ordinary law of the land” à qual todos os sujeitos deveriam estar adstritos, independentemente de terem uma natureza pública ou privada.

No entanto, esta tese, no entendimento de Cassese, era apenas parcialmente verdadeira: por um lado, em França, no último quarto do século XIX, houve um aumento da legislação administrativa; por seu lado, em Inglaterra existiam regras especiais (“official law”) apenas aplicáveis a autoridades públicas (Cassese dá o exemplo do princípio da imunidade da Coroa em matéria de responsabilidade ou o do privilégio do corpo diplomático e da polícia). Assim, a interpretação que Dicey fazia dos dois modelos não era a mais correcta: de facto, em Inglaterra já existiam regras e procedimentos especiais para o corpo administrativo.

No entanto, Dicey tinha razão quando estabelecia uma diferença premente entre os 2 modelos: de facto, se em França existiam juízes especiais (o que conferia à Administração uma autoridade reforçada), em Inglaterra apenas subsistiam os juízes comuns.

A verdade é que, com o passar do tempo, Dicey começou a atenuar a oposição entre o seu acérrimamente defendido “rule of law” e o tão criticado “droit administratif”: chegou mesmo ao ponto de sustentar que o direito administrativo “comes very near to law” (o que contrariava, quase por completo a sua visão inicial). Também acabou por admitir que a administração inglesa gozava igualmente de alguns privilégios especiais análogos aos da administração francesa e, pasme-se, que «recent legislation has occasionally, and for particular purposes, given to officials something like judicial authorithy» o que permite inclusive nalgumas circunstâncias, «which are rare, to see a slight approximation to “droit administratif”». Dicey acaba, no entanto, por aceitar definitivamente uma aproximação um pouco mais forte do que isso, ao publicar o artigo “The development of administrative law in England”.

Cassese conclui que, afinal, até para Dicey as diferenças dos dois sistemas não eram tão fortes quanto eram apontadas ao início por si próprio: além das diferenças no respeitante ao modo de aplicação jurisdicional do direito administrativo (por via de tribunais especiais ou apenas comuns), não havia assim tantas diferenças na prática a apontar.

Entre a nossa doutrina, relevamos ainda o sublinhar feito pelo prof. Vasco Pereira da Silva relativamente à necessidade da criação no Reino Unido dos “administrative tribunals” para um eficiente controlo da Administração (algo que não era tão eficaz quando o controlo era feito pelos tribunais comuns): esta medida exemplifica definitivamento o acolhimento, por parte do Reino Unido, de alguns procedimentos tão similares aos vividos numa fase inicial (Baptismo) do direito administrativo francês, que o professor veio a apelidar este estreitar de “ligações promíscuas” entre os tribunais e a Administração de “delinquência senil precoce”.

Terminamos com uma citação do prof. Freitas do Amaral, para resumir e ilustrar a presente exposição: “Tal diferença não pode significar, como queria Dicey, que em Inglaterra haja Estado de Direito e em França não. Neste ponto tinha razão Hauriou: os dois sistemas são distintos, mas são apenas duas espécies do mesmo género. Ou não fossem a Grã-Bretanha e a França duas democracias pluralistas de tipo ocidental”.

Bibliografia

- Introduction à l’étude du droit constitucionnel, 1885, Dicey (trad. Gaston Gèze)
- Le basi del dirito amministrativo, Sabino Cassese
- O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Vasco Pereira da Silva
- Curso de Direito Administrativo, Diogo Freitas de Amaral

João Gonçalves, nº 16431

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